A censura mascarada
PublishNews, Eliane Hatherly Paz*, 06/01/2016
Evocando o ‘cala já morreu’ da ministra Carmem Lúcia, pesquisadora da história editorial brasileira volta a defender a publicação do polêmico ‘Mein Kampf’, de Adolf Hitler, no Brasil

Há um ano o livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, entrava em domínio público. Na Alemanha, preparativos vinham sendo feitos desde 2012 pelo Instituto de História Contemporânea de Munique (IfZ) – um centro de pesquisas dedicado ao estudo do nacional-socialismo e da história da Alemanha a partir de 1918 –, com financiamento do governo da Bavária, para a publicação de uma versão comentada do libelo nazista, em dois volumes que somaram duas mil páginas.

Edição comentada do Mein Kampf lançada pela IfZ virou best-seller na Alemanha | © Divulgação
Edição comentada do Mein Kampf lançada pela IfZ virou best-seller na Alemanha | © Divulgação
No meio do caminho, o apoio financeiro foi retirado e o IfZ se viu às voltas com a possibilidade de ter seu trabalho considerado ilegal, já que o governo alemão passou a se apoiar na lei antirracismo para coibir qualquer editora de republicar Mein Kampf.

No final das contas, a justiça alemã entendeu que uma edição crítica e comentada do livro “maldito” de Adolf Hitler ajudaria a desmitificar seu autor, o líder nazista mais odiado do mundo, e liberou a edição da IfZ.

Lançada em 8 de janeiro de 2016, ela entrou para a lista de best-sellers e já vendeu mais de 80 mil exemplares somente na Alemanha. Em novembro do ano passado, recebeu o prêmio Sociedade Precisa de Ciência da Associação Leibniz, que reconheceu o valor da obra em expor "as declarações falsas e enganosas de Hitler".

Também no Brasil uma edição crítica foi preparada pela Geração Editorial. Seria a primeira versão comentada de Minha Luta no país, onde o livro foi lançado em 1934 pela Editora Globo, de Porto Alegre. Seu editor, Luiz Fernando Emediato, arcou com uma nova tradução – lembrando que as cinco editoras brasileiras que publicaram Minha Luta ao longo dos últimos 80 anos se utilizaram da versão do Major Ibiapina, feita originalmente para a Globo –, guarneceu sua publicação com três apresentações e acrescentou mais de 400 páginas de comentários de historiadores e notas de tradução ao texto original de Hitler.

Esses comentários, 305 no total, vieram de uma edição crítica norte-americana lançada em 1939 pela Reynal & Hitchcock. Até então, Hitler só permitia versões reduzidas (melhor dizendo, censuradas) em inglês – diferentemente da brasileira, desde seu lançamento integral e sem cortes. Traduzida por um grupo de professores universitários da New School for Social Research (NY), entre eles inúmeros judeus alemães antinazistas, a nova edição americana – sem cortes e comentada – antecipou em 77 anos a obra do IfZ. Para que esses comentários não ficassem datados, a Geração Editorial teve o cuidado de contratar um historiador brasileiro para atualizá-los e contextualizá-los. Ao final, a primeira publicação crítica e comentada a ser lançada para o leitor brasileiro sairia com quase mil páginas.

Exemplar da primeira edição do Mein Kampf em exposição no Museu de História da Alemanha, em Berlim | © Anton Huttenlocher / WikiCommons
Exemplar da primeira edição do Mein Kampf em exposição no Museu de História da Alemanha, em Berlim | © Anton Huttenlocher / WikiCommons
A notícia de que a Geração Editorial preparava o relançamento de Minha Luta suscitou reações antagônicas: manifestações de apoio em sua página no Facebook ressaltaram a importância histórica do livro e a necessidade de se discutir abertamente o libelo racista. Inúmeros leitores, jornalistas e formadores de opinião viram a iniciativa como o amadurecimento de nosso direito à informação e da livre circulação de ideias, garantidos no artigo 5º da Constituição de 1988. Já as manifestações contrárias, que incluíram até um abaixo-assinado pedindo às livrarias que não vendessem a edição comentada, culminaram na proibição, em 6 de fevereiro passado, da comercialização, exposição e divulgação do livro, decisão fundamentada por seu autor, o juiz Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal do RJ, no artigo 20, § 3º, inciso I da Lei 7.716/89, segundo o qual são crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceitos de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional”, podendo o juiz “determinar o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo”.

Neste 1º de janeiro de 2017, em que Mein Kampf completa um ano em domínio público, nos encontramos exatamente a um mês da única edição brasileira crítica e comentada do livro de Adolf Hitler estar há um ano sob intervenção. Não seria essa a ocasião propícia para o mercado editorial e os leitores brasileiros se perguntarem se queremos ser tutelados pelo Estado no que diz respeito ao que devemos ou não publicar e ler? Ou, ainda, se a ministra Carmem Lúcia (STF) estava enganada, e o “cala a boca não morreu”?


* Eliane Hatherly Paz é jornalista, Dra. em Letras (PUC-Rio) e pesquisadora da história editorial brasileira. Coordenadora e professora da pós-graduação lato sensu "A produção do livro: do autor ao leitor", da PUC-Rio, entre 2006-2011. Atuou como revisora, copidesque, coordenadora editorial, assessora de imprensa e livreira. Pós-graduada em Book Publishing pela New York University e pela Fundação Getúlio Vargas.

[06/01/2017 08:47:00]