A edição digital na era da mobilidade: América Latina (2/3)
PublishNews, OCTAVIO KULESZ, 13/07/2016
No segundo artigo da série 'Edição digital na América Latina', Octavio Kulesz fala sobre os vínculos que as editoras tradicionais estabelecem com as novas tecnologias e o boom da autopublicação

Este é o segundo dos três artigos sobre a edição digital na América Latina (o primeiro pode ser lido aqui). Com a série, pretendo atualizar os dados do Relatório sobre a edição digital na América Latina publicado originalmente em 2011 pela Aliança Internacional dos Editores Independentes, com apoio da Fundação Prince Claus. Nesta oportunidade, estudamos os vínculos que as editoras tradicionais estabelecem com as novas tecnologias, assim como o surgimento das editoras digitais e o boom da autopublicação.

1- A edição tradicional e as novas tecnologias

Como apontava Jonas Suassuna, da Nuvem de Livros, no primeiro artigo, o sucesso de uma plataforma depende, em boa medida, de que os conteúdos tenham sido trabalhados e selecionados de maneira cuidadosa. Assim, a figura do editor continuaria sendo absolutamente relevante na era digital. Dentro deste marco, o que está acontecendo com as editoras latino-americanas?

No relatório de 2011, era sugerido que, para os selos tradicionais, as novas tecnologias representavam tanto uma oportunidade quanto um desafio. Cinco anos mais tarde, a ambivalência parece continuar: as vantagens são evidentes para alguns subsetores, enquanto que para outros ainda existem desafios.

Entre as editoras universitárias, por exemplo, a utilização de ferramentas digitais aumenta de forma progressiva. Em maio de 2015, Eudeba – o selo da Universidade de Buenos Aires – apresentou seu próprio dispositivo de leitura eletrônica, chamado Boris – em homenagem a Boris Spivacow, um dos principais impulsionadores da editora nos anos 1950 e 60. No momento do lançamento, Gonzalo Álvarez, presidente da empresa, deixou claro qual é sua visão de futuro:

Como empresa de conteúdo, continuamos editando em papel e em formato digital []. Usamos ferramentas modernas para cumprir os objetivos que a editora sempre teve: vender muito mais barato, quase pela metade do preço, em comparação com o aparelho mais barato do mercado na Argentina.

Vídeo-lançamento do dispositivo Boris.

Entre as editoras independentes, muitas são as que já digitalizaram seu catálogo. No entanto, a incorporação de ferramentas digitais implica desafios de todos os tipos, tais como o risco da pirataria, as complexidades jurídicas e as dificuldades técnicas. Deborah Holtz, diretora da Trilce Ediciones – famosa editora mexicana, reconhecida por seus livros de arte, poesia e cultura popular – e presidente da Alianza de Editoriales Mexicanas Independientes, sintetiza os obstáculos que enfrentou em sua experiência com os novos formatos:

Passamos pelo menos um ano e meio fazendo testes. Como a maioria de nossos livros são ilustrados, temos medo que as imagens acabem em todos os lados. Outra parte do problema é voltar a revisar contratos, já que a maioria não previa o formato digital, o que faz com que o processo seja ainda mais complicado. Outra decisão tem a ver com o DRM e o acesso que é permitido ao usuário. Esta é outra complexidade adicional, já que há vantagens e desvantagens em cada modelo. [entrevista pessoal]

2- Editoras digitais: entre o catálogo próprio e a oferta de serviços

Apesar de que numerosos selos tradicionais já estão trabalhando com livros eletrônicos, surge pouco a pouco uma nova categoria de atores no mercado: estamos falando das editoras nascidas digitais. Dentro deste grupo, achamos em primeiro lugar uma grande quantidade de empreendimentos que desenvolvem apps, pensadas para um público infantil. Um caso interessante é a aplicação Love: trata-se de uma adaptação digital do livro homônimo publicado em 1964 pelo artista italiano Gian Berto Vanni. A obra, editada por Niño Studio (Argentina), recebeu uma excelente recepção, a ponto de ter sido ganhadora em 2014 do Ragazzi Digital Award (Feira do Livro de Bolonha).

Trailer do aplicativo Love:

Por outro lado, existe na América Latina – e sobretudo no México – um interessante movimento de editoras digitais dedicadas à narrativa e ao ensaio. A editora Malaletra, por exemplo, aposta desde 2011 na publicação de e-books de literatura hispano-americana. As obras são comercializadas da própria web da editora, em formato ePub e PDF. Interrogados sobre por que decidiram incursionar nos livros eletrônicos, os fundadores do projeto explicam:

A literatura na América Hispânica está mais isolada que nunca. As obras de nossos escritores, sem contar as exceções, mesmo publicadas por multinacionais, não são distribuídas fora de seus países. Mediante a publicação digital e a distribuição online, este fenômeno pode pelo menos ser mitigado.

O selo digital Nieve de Chamoy, liderado pela poeta e editora Mónica Braun, foi fundada no final de 2014. De seu catálogo sobressai o e-book Mastodonte (capa ao lado), do escritor e jornalista Jaime Reyes: trata-se de um romance escrito para aparelhos móveis que inclui hiperlinks e uma trilha sonora que pode ser escutada gratuitamente no Spotify. Quando perguntado se faria sentido pensar em uma versão impressa, Reyes oferece uma resposta decisiva para compreender o potencial da edição eletrônica:

Sim, mas teria sido complicado conseguir transmitir facilmente a ideia da experiência hipertextual ou multimidiática, pois teria implicado mais ações do leitor para completar a vivência. Acho que não conseguiria seu objetivo completo em uma edição de papel. Seria como uma dessas edições comentadas de forma confusa, que o leitor compra entusiasmado, mas que poucas vezes termina de ler porque a quantidade absurda de notas de rodapé que contém o obrigam a realizar ações que, no terreno físico são cansativas, chatas, distrativas, desajeitadas.

A empresa Ink, por outro lado, se apresenta como “a única editora mexicana que produz livros de arte em formato interativo”. Da mesma forma, o selo Tesseract pages comercializa desde 2011 obras de ficção científica, teatro e divulgação científica, unicamente em formato digital.

No Chile, vale a pena destacar o caso de Ebooks Patagonia. Fundada em 2010, a editora formou um catálogo variado de narrativa latino-americana, ensaio e literatura infantil. Javier Sepúlveda – criador do selo – está otimista com o potencial da edição digital chilena, em especial pelo impacto dos smartphones:

Os celulares representam o futuro do acesso e da leitura. Um país com mais celulares que habitantes constitui o cenário perfeito para a revolução que está acontecendo: por um lado, nossos autores estão publicando mais e ficando conhecidos internacionalmente; por outro lado, os usuários desfrutam de um acesso mais fácil ao conteúdo.

A editora colombiana eLibros, por outro lado, está concentrada na edição de literatura latino-americana clássica e contemporânea. Seus títulos podem ser comprados nas principais plataformas, além de um sistema próprio, chamado “Tarjeta eBook”.

Uma tendência clara entre as editoras digitais nativas é que combinam a distribuição de publicações próprias com o fornecimento de serviços para terceiros – instituições, autores individuais e até outras editoras. Pode se tratar de serviços de revisão, conversão a ePub3, digitalização, reconhecimento de texto e desenvolvimento de apps, entre outros.

Na verdade, seguindo esta linha, na América Latina surgiram um bom número de editoras que não comercializam catálogo próprio, mas que estão focadas totalmente no fornecimento de soluções digitais para outras empresas do setor. A empresa mexicana Manuvo, por exemplo, desenvolveu aplicativos móveis para diversas entidades da região, tais como Conaculta ou a Biblioteca Nacional Digital de Chile. A equipe de Libresque (Argentina) oferece um acompanhamento para editoras interessadas em produzir livros no formato ePub ou apps. Da mesma forma, o projeto Simplíssimo – com sede em Porto Alegre – já converteu mais de 3.500 obras ao formato de e-book desde o ano 2010; publica, além disso, uma lista semanal dos livros eletrônicos mais vendidos no Brasil e também realiza serviços de publicação para autores.

3- O boom da autopublicação

Certamente, o segmento da autopublicação está registrando um avanço considerável. Além das plataformas globais como KDP (Amazon) ou Writing Life (Kobo), um número cada vez maior de portais nativos aposta nesse nicho. Na Argentina, Bajalibros lançou seu sistema Indielibros, para a edição de obras em formato impresso e digital. O site Clube de Autores (Brasil) – que existe desde 2009 – conta com um catálogo de dezenas de milhares de títulos e se posiciona como “a maior comunidade de autopublicação da América Latina”. Widbook – também brasileira, fundada em 2012 – é uma plataforma na qual os escritores podem subir seus textos para que qualquer um leia online, fazendo uso intensivo das redes sociais. Um sistema parecido foi implementado no México pelo portal Novelistik. No geral, os modelos de negócio das empresas de autopublicação estão baseados na cobrança de uma comissão pela venda de exemplares – tanto em papel quanto digital –, ou na venda de publicidade.

Vale a pena enfatizar que o potencial dessas plataformas não está apenas em sua eficácia para a autopublicação, mas também em sua grande capacidade de coleta de dados – em particular sobre o comportamento dos leitores que interagem com os textos. Tais informações podem ser de grande interesse para outras empresas, por exemplo as editoras tradicionais. Na verdade, são conhecidos os casos de textos autopublicados através de plataformas como Wattpad que depois foram publicados em papel: ocorreu assim com O amor não tem leis – da escritora brasileira Camila Moreira – que foi lançado pelo selo Suma de Letras, da editora Objetiva.

Nesse contexto, Alberto Lujambio – cofundador da Novelistik – explica:

Não só captamos a voz ativa do leitor, mas também a passiva – que se refere à leitura silenciosa. Eu posso pensar que um livro é muito bom, mas não sei até onde as pessoas leram. São dados diferentes e Novelistik pode entender e comparar os dois. Aí está a possibilidade que os autores têm para serem cada vez melhores: entender sua audiência. Só assim um autor pode se tornar um fenômeno editorial. E viver de sua escrita.

No próximo artigo: as feiras de livros na era digital; as políticas públicas de acesso; reflexões finais.

[13/07/2016 09:00:00]