A edição digital na era móvel: América Latina (1/3)
PublishNews, Octavio Kulesz, 12/04/2016
Octavio Kulesz começa uma série de artigos que vão possibilitar um retrato atual do mercado de livros digitais na América Latina

Cinco anos se passaram desde a publicação do primeiro relatório sobre a edição digital nos países em desenvolvimento. No caso específico da edição latino-americana, um olhar retrospectivo mostra que boa parte dos empreendimentos que tinham se lançado, na época, a experimentar com as novas tecnologias aplicadas ao livro fecharam suas portas ou mudaram completamente sua maneira de trabalhar. Com a exceção das grandes plataformas globais – que normalmente possuem recursos abundantes e podem suportar longos períodos sem lucros –, a cena da edição eletrônica na América Latina é hoje composta por novos nomes.

No entanto, grande parte dos desafios, oportunidades e tendências identificadas no relatório original continuam presentes ou até mesmo se intensificaram. Estamos nos referindo principalmente à crescente demanda de conteúdo online, à implementação de políticas públicas para a redução da divisão digital, à clara liderança do Brasil e o protagonismo imparável – sublinhando em todo o relatório – do celular como plataforma leitura.

Dentro deste quadro, propomos aqui uma atualização dos dados principais sobre a edição digital latino-americana, bem como algumas reflexões adicionais. Claro, esta análise não quer constituir uma lista exaustiva de casos – esforço que seria em vão, pela rápida evolução que caracteriza qualquer setor digital. Trata-se, na verdade, de uma tentativa de entender quais são as principais forças operando – e que, provavelmente, vão operar no futuro – no interior deste rico ecossistema.

Uma região diversa

Como sabemos, a América Latina se caracteriza por uma grande riqueza cultural e étnica. Na região coexistem diferentes línguas, mas os dois idiomas majoritários são o português – falado no Brasil – e o espanhol – falado na maioria dos outros países. Esta divisão em dois “mundos” linguísticos – um lusófono e outro hispanófono – ajuda a explicar uma série de tendências relacionadas com a edição em geral e com a edição digital em particular.

Para começar, do ponto de vista de sua indústria editorial, os países de língua espanhola aproveitam as vantagens da língua e se relacionam entre si de uma forma dinâmica – em termos de venda de exemplares, participação em feiras, etc. No entanto, às vezes, estas trocas são condicionadas por especificidades normativas de cada nação – regulações, moedas, preços, etc. – e até mesmo por algumas variantes linguísticas do espanhol. Assim, apesar de contar com um mercado potencialmente enorme, o setor editorial do bloco hispanófono apresenta uma estrutura, por assim dizer, de “arquipélago”. Isso contrasta com a situação do Brasil: na verdade, a indústria deste país pode aproveitar seu mercado interno de um modo muito mais eficaz e fazer com que qualquer projeto se torne mais facilmente escalonável.

Tecnologia e redes sociais

Nos últimos anos, o equipamento tecnológico dos usuários melhorou consideravelmente. Segundo dados da eMarketer de julho de 2015, a América Latina tem uma penetração de Internet de mais de 50%, enquanto se posiciona como uma área de grande desenvolvimento de celulares, com cerca de 400 milhões de usuários de celulares (64, 7% da população), dos quais mais de 155 milhões são donos de um smartphone. Além disso, mais de 15% da população utiliza um tablet. No entanto, o uso de e-readers de tinta eletrônica é muito menos generalizada.

A região é muito ativa nas redes sociais. Na verdade, a América Latina é o lar de mais de 217 milhões de usuários do Facebook e, a respeito do Twitter, registra uma taxa de crescimento que está entre as mais altas do mundo. WhatsApp, por sua vez, também apresenta níveis extremamente elevados de penetração. É preciso entender que a sociabilidade on-line da América Latina não se expressa somente através das grandes aplicações globais, mas mesmo as redes locais atingem uma massa crítica considerável: um caso destacado é Taringa!, um portal argentino que – segundo é indicado nas estatísticas do próprio site –já conta na região com mais de 27 milhões de usuários registrados.

De fato, existem na América Latina muitas iniciativas que aproveitam o poder das redes sociais para difundir a leitura. Desde 2015, o projeto brasileiro Leitura de Bolso distribui textos curtos que são lidos exclusivamente através WhatsApp [PublishNews escreveu sobre o Leitura de Bolso, clique aqui para reler]. Apareceram, além disso, poderosas plataformas de recomendação de livros. Um caso destacado é Skoob, criado no Rio de Janeiro em 2009: este portal – cujo nome é um anagrama da palavra “books” – tem mais de 3 milhões de usuários que compartilham informações sobre os livros que leram ou pretendem ler no futuro.

O avanço do comércio eletrônico: livros impressos e digitais

Apesar da desaceleração econômica que afeta muitos países da região, o comércio on-line cresceu 22,9% em 2015. Enquanto isso, como resultado da massificação dos smartphones, os meios de pagamento móveis estão se expandindo de forma sustentada.

Como ocorre nas redes sociais, os usuários latino-americanos procuram os sites globais, mas também grandes plataformas nativas, como MercadoLibre – fundada pelo argentino Marcos Galperin em 1999 – ou Submarino – criada no Brasil, também em 1999. Para se ter uma ideia da escala destes portais regionais, MercadoLibre declarou contar, no final de 2015, com mais de 138 milhões de usuários e um volume de transações de 1,84 bilhão de dólares.

No setor editorial, o impacto da digitalização é cada vez mais evidente, mesmo na área de livros impressos. Para começar, a venda de exemplares em papel migra gradualmente para a web. Outra tendência a enfatizar é o avanço da impressão sob demanda como tecnologia de produção – tal como sugere, por exemplo, o recente lançamento de Bibliomanager, uma aliança de gráficas regionais.

Na área específica dos e-books, deve-se notar que só existem dados muito estimados sobre as vendas. Geralmente costuma-se observar que o faturamento deste segmento representa menos de 1% do total da indústria editorial e que – é possível supor – os e-books constituem um segmento ainda insignificante. No entanto, existem algumas nuances a considerar:

- Em primeiro lugar, a cifra de faturamento é geralmente obtida a partir dos dados das câmaras do livro, ou seja, das editoras “tradicionais”. Isso deixa de lado as vendas das grandes plataformas que operam fora do setor e que comercializam, por exemplo, textos autopublicados.

- Além disso, as vendas contabilizadas no cálculo acima refletem apenas o comportamento do mercado formal, que realmente ainda é muito pequeno. No entanto, de acordo com dados do Latinobarómetro, a leitura em suportes eletrônicos se tornou uma das atividades mais praticadas por usuários locais. Isso poderia indicar que os usuários da região estão recebendo os textos por vias informais – como ocorre com os textos baixados da web sem autorização dos donos dos direitos autorais – ou outras variantes livres. Assim, o mercado potencial – a “base do iceberg” – seria gigantesco, embora ainda não se traduza em um circuito formal.

- Além do que acontece com o consumo, outro sinal de que as publicações eletrônicas estão crescendo rapidamente na América Latina aparece no lado da produção. De acordo com dados compilados pela CERLALC, os registros de ISBN correspondentes a publicações digitais se elevaram, em 2013, para nada menos do que 21% do total dos trabalhos inscritos.

Livrarias de e-book

De qualquer forma, existem atualmente várias livrarias de e-books – tanto globais como nativas – que trabalham na região. A Amazon já tem portais no Brasil e no México – inaugurados respectivamente em 2012 e 2015 – de onde comercializa seus e-books e dispositivos.

A Kobo abriu operações nesses dois países em datas semelhantes, mas com uma estratégia diferente. Esta empresa fundada em Toronto trabalha em colaboração com livrarias nacionais: no Brasil, estabeleceu uma parceria com a Livraria Cultura e, no México, com Gandhi e Porrúa – desta parceria tripartite nasceu a plataforma Orbile.

Entre as lojas nativas, vale a pena destacar o caso de Bajalibros. Esta empresa criada em Buenos Aires mantém atividades na maioria dos países da região e tem um catálogo de mais de 500 mil obras em espanhol e inglês, de diferentes editoras.

Se a estas livrarias tanto globais quando nativas, acrescentarmos as livrarias tradicionais que também vendem e-books de seus sites, vamos comprovar que a oferta de livros eletrônicos na América Latina é abundante. No entanto, existem alguns desafios que devem ser levados em conta – e que podem explicar em parte por que os usuários escolhem outras fontes de leitura:

- Os preços dos e-books costumam ser altos para o comprador local, sejam estabelecidos pelos editores – nos países de preço fixo estabelecido como na Argentina – ou pelas próprias plataformas. Além disso, se tomarmos o caso dos portais globais, seus preços – mesmo em moeda local – estão muitas vezes ligados ao dólar e, portanto, aumentam de forma automática quando acontece uma desvalorização.

- Embora em termos quantitativos a oferta de e-books seja abundante – centenas de milhares ou milhões de obras –, o fato é que dentro desse total, a parcela de títulos em espanhol ou português é escassa. Além do mais, até mesmo os textos propostos no idioma local estão muitas vezes mal adaptados para o público de cada país. Frequentemente, este problema pode ser explicado pelo fato de que os e-books oferecidos pelos portais nativos vêm de e-distribuidoras internacionais, enquanto os agregadores nacionais não conseguem decolar.

Nuvens de livros (e audiobooks)

Além das lojas que vendem e-books, encontramos na América Latina um bom número de bibliotecas virtuais comerciais: são as chamadas “nuvens de livros”. Em contraste com o modelo de cópia – adotado pelas livrarias, que vendem e-books por unidades –, estas plataformas trabalham com o esquema de assinatura: os usuários pagam uma soma fixa mensal para terem acesso a um catálogo vasto. Trabalham principalmente com obras na língua local que passaram por um processo de seleção, fazendo com que sejam mais atraentes ao leitor. A seguir, listamos alguns exemplos destacados, todos do Brasil.

Em junho de 2011, quatro editoras acadêmicas brasileiras – Grupo A, Atlas, Grupo GEN e Saraiva – apresentaram a iniciativa Minha Biblioteca. Com um foco claro no ensino superior, este projeto conseguiu reunir um fundo de 5 mil títulos acadêmicos. Os usuários têm a possibilidade de combinar capítulos de diferentes obras e adquirir livros personalizados, graças ao sistema Pasta do Professor.

O portal Árvore de Livros foi lançado no final de 2013. Seu catálogo inclui uma pluralidade de gêneros – mais de 14 mil obras de ficção, literatura infantil, autoajuda, entre outros – e tem como alvo um público amplo. A plataforma está destinada principalmente a clientes institucionais – setor público, escolas e empresas. As editoras que participam do projeto podem monitorar o desempenho dos empréstimos em tempo real.

No entanto, talvez seja o projeto Nuvem de Livros que alcançou mais impacto. Desenvolvido pela empresa Gol Mobile e apresentado na Bienal do Rio 2011, este portal alcançou uma massa impressionante de usuários: graças a um convênio com a operadora Vivo e o portal Terra, conta atualmente com mais de 2,5 milhões de assinantes. Nuvem Livros deu inclusive os primeiros passos para conquistar o mercado espanhol, a tal ponto que se apresenta como um rival digno da Amazon na América Latina. De acordo com Jonas Suassuna – fundador da companhia –, a chave do sucesso está na qualidade dos títulos selecionados, mais que na mera quantidade:

Nuvem de livros nasce com um espírito familiar. Sem o controle de nossa equipe de especialistas não entrar nenhum livro na nossa biblioteca. Nem aceitamos a autopublicação. O que pode servir para outras plataformas, e na verdade é uma de suas marcas, não vale para nós. Acreditamos no trabalho de uma editora, dos editores, como passo prévio para publicar um livro, como filtro entre o escritor e os leitores. A Internet é tudo: pode ser um esgoto a céu aberto, por isso é necessário que existam lugares onde é aplicado certo nível de exigência.

Há também uma série de plataformas globais que trabalham na América Latina com o modelo de assinatura. Um caso iniludível é o Kindle Unlimited, disponível no Brasil e no México: ali a Amazon conseguiu reunir milhares de títulos concebidos para o leitor local, embora as negociações com as editoras nem sempre foram fáceis. Dois outros atores internacionais de peso são 24Symbols e Bookmate: estas plataformas estabeleceram parcerias com empresas de telefonia que operam na região – como Tigo –, o que garantiu uma massa considerável de usuários e a possibilidade de cobrar pela conta do celular.

Até agora nos concentramos na área das publicações escritas, mas na região há também uma oferta crescente de audiobooks. O serviço Ubook, introduzido no Brasil no final de 2014, oferece um fundo de mil obras, lidas por locutores, atores ou os próprios autores. Seus mais de um milhão de assinantes têm a possibilidade de pagar uma taxa mensal de R$ 18,90 (cerca de US$ 4,50) para acessar esse fundo, via streaming.

Na próxima parte: as editoras tradicionais e as novas tecnologias; as editoras digitais, entre o catálogo próprio e a oferta de serviços; o boom da autoedição.

A versão original deste artigo foi publicado no site da Aliança Internacional de Editores Independentes.

[12/04/2016 08:00:00]