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O xadrez: de Bobby Fischer a Machado de Assis
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 1º/06/2016
Em sua coluna dessa semana, Roney fala sobre o universo do xadrez e a sua relação com a literatura e o mundo dos livros

O filme O dono do jogo, do diretor Edward Zwick, em cartaz em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, lembra a final mundial de xadrez entre Bobby Fischer e Boris Spassky, em 1972, tratado pelos governos dos EUA e da URSS como uma autêntica batalha da Guerra Fria. Estava em jogo não apenas a disputa ideológica entre dois sistemas econômicos e políticos, mas um duelo que decidiria qual sistema era capaz de produzir o homem mais inteligente do mundo.

Na União Soviética e Europa Oriental, o xadrez já era cultuado e, com Bobby Fischer, virou uma febre também nos EUA, transmitido ao vivo pela TV. Os jogadores passaram a ser tratados como astros de rock.

O filme recria bem o mundo do xadrez e mostra várias cenas da livraria russa que Bobby Fischer frequentava no Brooklyn, em Nova York, no pós-guerra, e onde comprou manuais e outras publicações de xadrez nas quais estudou a escola soviética, o que lhe possibilitaria derrotar os antes imbatíveis mestres e se tornar o primeiro jogador norte-americano campeão do mundo.

A cena mais inusitada do match de 1972 foi o comportamento de Spassky ao aplaudir a vitória de Fischer na célebre quinta partida, que empatou a série. O filme mostra também o processo de loucura de Fischer e sua paranoia de perseguição comunista (lembrando que ele era filho de imigrantes russos comunistas). Fischer não compareceu para a abertura do match de 1972 na Finlândia e perdeu a segunda partida por W.O., se recusando a jogar com público ao vivo e câmeras transmitindo. A história não tem um final feliz, após se tornar campeão Fischer enlouqueceu de vez.

Livros-manuais de xadrez eram companhia obrigatória mesmo dos que apenas gostavam de se divertir, e permanecem com seu apelo na era digital, impressos ou eletrônicos. Um dos mais populares é o Manual de xadrez, de Idel Becker (1910-1994) primeira edição em 1948 da Civilização Brasileira, e que chegou a 22ª edição nos anos 1990, pela editora Nobel. Becker é autor também de outro clássico do jogo, Aberturas e armadilhas no xadrez, também da Nobel. Na vida profissional, era médico e professor de Anatomia na Faculdade de Odontologia e também professor de Espanhol, tendo publicado manuais e dicionários de espanhol, além do popular Pequena História da Civilização Ocidental.

Além de ensinar o básico do jogo, o manual de Idel Becker tem desafios, problemas e armadilhas e a reprodução de muitas partidas célebres, “imortais”, transcritas e comentadas lance a lance, e história e curiosidades do xadrez. O apelo de um manual é a seleção que propõe de problemas e partidas comentadas.

No prefácio de 1948, intitulado Jogo-Arte-Ciência, escreveu o autor: “o jogo de xadrez é um esporte intelectual. É, ainda, uma arte: pode criar beleza – em partidas e problemas que produzem, no enxadrista, a emoção estética. E como responde a regras, leis e situações, cuja pesquisa e estudo norteiam os jogadores e lhes dão maior domínio no jogo – o xadrez é, também, uma ciência. Daí, pois, o nosso título – jogo-arte-ciência – que sintetiza a perfeita definição do xadrez”. Em seguida, explica Becker, que o xadrez “requer, portanto, habilidade (jogo), imaginação (arte) e cálculo (ciência). A prática, o estudo e o raciocínio são os fatores de progresso no jogo”.

Para Becker, assim como nem todos que gostam de música ou física se tornarão um Beethoven ou um Einstein, nem todos que gostam de xadrez se tornarão um Lasker ou Capablanca, mas “qualquer um pode estudar xadrez e progredir até tornar-se discreto enxadrista”.

Ao final do livro, Becker publica o fac-símile da capa do mais antigo livro sobre xadrez publicado no Brasil, O perfeito jogador de xadrez ou Manual completo deste jogo, de 1850, autoria de Henrique Velloso D´Oliveira, da editora Laemmert.

Outro livro muito antigo é Cassiana brasileira, do músico Artur Napoleão, de 1898, e o primeiro problema (a partir de certa posição das peças propor um cheque-mate em tantos lances) foi criado por ninguém menos que o escritor Machado de Assis, aficionado do xadrez e que jogava com A. Napoleão e frequentava desde 1868 o Grêmio de Xadrez, no Rio de Janeiro.

O artigo Mente de estrategista de Cláudio de Souza Soares, é interessante nas associações entre literatura e xadrez. Para ele, “a discrição e a obstinação de Machado eram características de um grande enxadrista” e pistas sobre sua literatura podem ser encontrados nos labirintos dos tabuleiros de xadrez. Neste hotsite da Academia Brasileira de Letras (ABL), lista e reproduz todas as referências ao xadrez na obra de Machado de Assis.

Depois de Fischer e Spassky, outro duelo célebre ocorreu pouco depois, em 1978, nas Filipinas, entre Anatoly Karpov X Viktor Korchnoi. Foi um segundo round enxadrístico da Guerra Fria, Karpov representando a União Soviética e a “Cortina de Ferro”, e Korchnoi, campeão soviético quatro vezes, havia se exilado em 1976 na Suíça, representando o “mundo livre” (a esposa e o filho foram proibidos de deixar o país). Karpov sagrara-se campeão em 1975 após Bobby Fischer se recusar a defender o título contra ele. Korchnoi, na época ainda na URSS, defendeu Fischer, o que acirraria os ânimos ideológicos.

Korchnói usou óculos escuros e Karpov reclamou que a luz refletida nele o desconcentrava, depois desconfiou de sabotagem na própria cadeira. Korchnoi, por sua vez, acusou os soviéticos de levar um parapsicólogo para emitir ondas cerebrais que o desconcentrariam. O parapsicólogo foi proibido de sentar nas cadeiras da frente. Clima de bizarrices paranoicas sem limite, daquelas que só a Guerra Fria produziu, potencializadas pelo anticomunismo que nós conhecemos bem aqui.

Era possível acompanhar o jogo na coluna diária de xadrez do “Estadão”, assinada por Herman Claudius van Riemsdijk. O match se arrastou por semanas. Uma única partida podia demorar uma semana, com sucessivas suspensões e adiamentos e, quase sempre terminava empatada. A vitória final foi de Karpov por seis vitórias contra cinco após 32 partidas.

O fascínio do xadrez, e de seus manuais com partidas comentadas e desafios, segue incólume, potencializado pela internet, embora nada substitua e graça de um duelo face a face diante do tabuleiro. Idel Becker, em uma seção de curiosidades, conta que em uma partida, após o primeiro lance, saída das brancas e resposta das pretas, podem produzir-se nada menos do que 400 posições diferentes, número que se multiplica aos milhares e milhões após alguns lances. “Na contracapa de edições posteriores do seu manual lê-se: “O xadrez – como o amor, como a música – tem o poder de fazer os homens felizes”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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