Publicidade
Publicidade
Quando os livros foram à guerra
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 26/01/2016
Em sua coluna dessa semana, Roney Cytrynowicz lembra uma história pouco conhecida da Segunda Guerra Mundial

Soldado americano lendo uma edição da Armed Services Edition de 'A tree grows in Brooklyn' | © Domínio público
Soldado americano lendo uma edição da Armed Services Edition de 'A tree grows in Brooklyn' | © Domínio público
Durante a Segunda Guerra Mundial, nos EUA, foi estabelecido um comitê de editores e um serviço especial do Departamento de Guerra e da Marinha, a Armed Services Editions (ASEs), para escolher, editar e enviar livros aos mais de dez milhões de soldados norte-americanos no front da guerra entre 1942 e 1945.

Foram editados nada menos que 1.322 diferentes títulos no total, a uma média de cerca de 30 diferentes obras por mês com tiragens, cada um, de pelo menos 65 mil exemplares. Eram livros impressos em um formato que cabia no bolso do uniforme militar, o que permitia aos soldados carregar as obras e ler inclusive em situações extremas, como dentro de trincheiras ou durante o descanso dos combates. Os livros chegaram até as mais distantes e isoladas ilhas do Pacífico, onde foram travadas batalhas com dezenas de milhares de mortos entre EUA e Japão. Também fizeram companhia aos soldados no Dia D, o desembarque na Normandia.

Estes livros não apenas foram a principal, muitas vezes, única forma de lazer ou distração de mais de 10 milhões de soldados norte-americanos, da Europa ao Pacífico, como passaram a ser imensamente apreciados pelos soldados. Em When books went to War - The stories that helped us win World War II, (Mariner Books), Molly Guptill Manning conta um sem número de histórias comoventes envolvendo livros e soldados, desde relatos de obras que fizeram companhia aos combates em períodos de extrema angústia e solidão, livros que contribuíram para o ânimo da recuperação de feridos em hospitais, livros encontrados dentro dos bolsos do uniforme de soldados mortos em combate. Histórias de guerra, livros e leituras.

Ao final da guerra, os livros contribuíram para formar um público leitor. Jovens e adultos que não tinham o hábito da leitura, muitos que jamais haviam pensado em ler um romance, descobriram a leitura e os livros e passaram a ler e a contar com os livros em seu cotidiano, disseminando o hábito para a família e o entorno.

Em relação aos autores, que recebiam cartas dos leitores no front, carregadas de emoção, as edições de centenas de milhares de exemplares criaram diversos best-sellers e autores consagrados. Para os editores, mostrou de forma precisa que edições econômicas e acessíveis a um vasto público eram um ótimo negócio e, com isso, as edições de guerra contribuíram para fortalecer um mercado em massa de livros baratos nos EUA no pós-guerra. Outras coleções, além das Pocket Books, se popularizaram.

O ASEs foi formado por um grupo de editores que decidia o que publicar e vendia os livros ao governo norte-americano por um preço de custo de cerca de 1/5 do preço de um livro paperback tipo Penguin. Entre as editoras representadas estavam a Random House, W.W. Norton, Doubleday, além do editor da Publishers Weekly.

A seleção de livros atendia ao objetivo de oferecer livros os mais variados, de literatura à história, de esporte a dicionários, de livros de administração a manuais técnicos. Entre os primeiros livros selecionados e distribuídos, havia autores como Charles Dickens, John Steinbeck, Antoine de Sant-Exupéry, Howard Fast, Graham Greene, Herman Melville, Voltaire, Mark Twain, Jack London e Joseph Conrad.

Esta campanha do governo e editores tinha ainda um objetivo claro de disseminar ideais identificados à causa dos Aliados, a democracia, o liberalismo, pelos quais se lutava, em oposição ao totalitarismo nazista. Desde a queima de livros de autores democratas, de esquerda e judeus, no ano de ascensão do nazismo ao poder, em 1933, os nazistas destruíram (já durante a guerra) de forma deliberada bibliotecas e livros na Europa. Era preciso, portanto, se opor à barbárie em uma verdadeira guerra de livros.

A ação da agência procurava mostrar, portanto, que era uma guerra de valores e visões de mundo antagônicas e também difundir estas ideais dos EUA e dos Aliados aos próprios soldados. Ao final da conflito, também houve uma maciça distribuição de livros, com traduções, às tropas aliadas.

O livro conta ainda outras histórias, como a da grande campanha de doação de livros em 1942 pela National Defense Book Campaign (NDBC), depois Victory Book Campaign (VBC), que pretendia arrecadar dez milhões de exemplares doados espontaneamente e efetivou uma ampla campanha pública, com postos de doação e remessa aos soldados, além das discussões sobre escolha de títulos, tentativas de censura e as questões industriais ligadas a estas edições.

A Armed Services Editions funcionou até 1947. No final da guerra, o governo dos EUA criou um programa em massa para subsidiar formação educacional e profissional para os soldados que voltavam da guerra e tinham que iniciar uma vida civil. Para a autora, o contato com os livros da ASEs contribuiu para consolidar a ponte rumo à reconstrução do país e da vida pessoal de cada ex-combatente. Segundo ela, ao voltar para casa, muitos haviam lido Platão, Shakespeare, Dickens, livros de história, de negócios, matemática, ciência, jornalismo e direito (com, inclusive, uma seleção de títulos voltada para profissões).

Os egressos da guerra entenderam que valia a pena devotar tempo e energia à leitura e ao estudo. Afinal, escreve Manning, se eles liam dentro de uma trincheira em meio a bombardeiros, certamente teriam disponibilidade de ler para a formação educacional e profissional no pós-guerra e se engajariam em estudos formais.

When books came to war, para além de um fascinante capítulo de história cultural e social da guerra, mostra o valor central que os livros e a leitura podem ter em uma sociedade, mesmo em uma situação extrema de guerra e na reconstrução civil posterior. Manning estima que 123 milhões (cento e vinte e três milhões!) de exemplares foram impressos pela ASEs, além de 18 milhões via doação, todos enviados aos soldados. Mais, portanto, do que o estimados 100 milhões de livros destruídos deliberadamente pelo nazismo.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
Roney Cytrynowicz parte da polêmica lei polonesa que quer incriminar quem se referir aos campos de extermínio como poloneses e não nazistas para falar de dois livros essenciais para entender a questão
O que significa, em 2018, manter uma publicação impressa como o Almanaque Pensamento, que tem exatas 200 páginas de previsões astrológicas e outras previsões para todos os dias do ano?
Em sua coluna, Roney Cytrynowicz conta a história da escritora japonesa Mitsuko Kawai e a sua relação com a Biblioteca Amadeu Amaral localizada no bairro paulistano da Saúde
Em sua coluna, Roney Cytrynowicz pega carona no relançamento de 'A chave do tamanho', de Monteiro Lobato, pelo selo Globinho, para fazer uma reflexão do mundo atual
A partir de Primo Levi e Anne Frank, Roney Cytrynowicz analisa a difusão da fotografia do menino Omran Dagneesh dentro de uma ambulância após ser ferido no bombardeio de Alepo
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Em novo artigo, Paulo Tedesco fala sobre a importância da regulação da comunicação digital e ações para frear a mentira e a violência digital e informativa
Neste episódio nossa equipe conversou com Rita Palmeira e Flávia Santos, responsáveis pela curadoria e coordenadoria de vendas da livraria do centro de São Paulo que irá se expandir em breve com nova loja no Cultura Artística
Todas as sextas-feiras você confere uma tira dos passarinhos Hector e Afonso
Em 'A cartinha de Deus', a autora leva os leitores em uma jornada íntima e inspiradora, mostrando como aprendeu a lidar com os desafios impostos pela distonia
Em 'Alena Existe', publicada pela Ases da Literatura, o autor Roger Dörl desvenda os segredos do universo numa trama repleta de ficção científica, aventura e mistério
A arte é livre, e temos que encarar a leitura como o cinema, a televisão, o circo.
Paulo Lins
Escritor brasileiro
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar