'Pouco tem se escutado o que é que as livrarias e os livreiros têm a falar', reclama Afonso Martin
PublishNews, Afonso Martin*, 12/11/2015
Em novo artigo, presidente da ANL fala sobre como as livrarias são percebidas pela sociedade

Em novo artigo, Afonso Martin fala sobre como as livrarias são percebidas pela sociedade | © Milton Ferraz
Em novo artigo, Afonso Martin fala sobre como as livrarias são percebidas pela sociedade | © Milton Ferraz
A literatura, quando a percebemos exclusivamente pelos olhos do fantástico, de suas histórias e personagens, pode nos dar a falsa impressão de um mero passatempo. Mas esta atividade humana, da escrita, é algo absolutamente singular: é a tradução e o registro da imaginação e memórias humanas.

Se a fome nos faz lembrar que é preciso comer e o medo de que é preciso sobreviver, a leitura da escrita, em qualquer que seja a sua forma, é o que nos faz lembrar de quem somos neste universo em construção; como civilização, sociedade e consciência humana coletiva.

A imaginação somada à escrita, nos dá a habilidade de lembrar. Lembrar onde está o salgadinho para mais tarde, mas também lembrar o que é ser livre. Como conquistamos essa liberdade, como somos melhores assim. Como somos frequentemente testados a negociar valores, dos quais, alguns deles, inegociáveis.

E, em momentos como esse, a pergunta que nós nos fazemos é: quais são os motivos, os valores, as histórias, as pessoas e os significados que nos fariam, ou nos fazem, partir ou ficar?

Em 05 de maio de 1978, era fundada a Associação Nacional de Livrarias (ANL). Diferente de outras entidades semelhantes pelo mundo afora, esta é, antes de mais nada, uma entidade de livrarias e depois de livreiros. Isso significa que é uma entidade que compreende valores impessoais objetivos, de coletividade sem relativismos.

É óbvio que tudo o que fazemos é, antes de mais nada, humano e pessoal. Mas nossos melhores sonhos sempre extrapolam o conforto individual. Somos acima de tudo, seres sociais e foi assim que chegamos ao questionável ápice da evolução animal. Questionado pelos nossos defeitos, mas legítimo pelas nossas capacidades.

Sempre escutei com certo incômodo que sou muito jovem e ansioso. Todos que me dizem tem certa razão: meus cada vez mais frequentes cabelos brancos certamente discordam do termo jovem, apesar de eu ainda me apegar à juventude. Quanto ao ansioso, estão absolutamente corretos. E esta é uma característica da qual não abro mão. Não pelo preciosismo, mas pela digna capacidade de me indignar.

Se tenho aprendido o que é resignação e paciência, não posso perder a capacidade de me indignar diante das “temerosas transações” que Chico Buarque cantava.

Muito tem se falado sobre as livrarias, mas pouco tem se escutado o que é que as livrarias e os livreiros têm a falar.

Não vou cometer o fanatismo de supra valorizar a livraria em detrimento de outros atores igualmente fundamentais para que o exercício de liberdade do autor, que se transforma em obra, livro e este último chegue até às mãos de quem o queira ler.

Mas como leitor, cidadão, pai, filho de um dos fundadores da ANL e hoje em exercício como diretor-presidente, seria irresponsável se viesse até aqui hoje e dissesse: “amigos, mercado e sociedade, estamos muito bem, obrigado!”

Como na parábola dos cegos que conhecem um elefante ou da caverna de Platão, a perspectiva de quem vê e o quanto vê, pode mudar muito sobre o que ela percebe. E tenho acompanhado como as livrarias têm sido percebidas há algum tempo. E muito se fala sobre o preço do livro e sobre a livraria, quase como um pedágio que cobra taxas demais.

Notadamente, esta percepção desconhece que o preço médio de um livro padrão não se altera há mais de 10 anos, sendo ainda hoje cerca de R$ 30. Não compreende a inflação desenvolvida durante esta década, nem como a pressão desses fatores agem.

Ignora que, diferente do restante do varejo, quem determina o preço de venda nominal é a editora por força da lei e do desconto sobre o preço de capa dado à livraria. Detentora, na grande maioria das vezes, também de exclusividade por conta do direito autoral, a editora determina o preço ao consumidor para quem e como quer.

Dizer que a livraria pode escolher o seu catálogo assim como uma loja pode escolher o seu fornecedor, não nota a diferença para o supermercado. A livraria não consegue vender o mesmo macarrão de diferentes marcas. Para nós, inexiste quase sempre a possibilidade de vender o mesmo produto, mas de outra marca.

É ignorada a necessária viabilidade econômica que uma livraria, como negócio que é, precisa para existir, se desenvolver e ser o acesso dos livros para as pessoas. A livraria e a biblioteca possuem a mesma e fundamental importância para que a cidadania seja plena no seu exercício. As duas possuem papéis complementares entre si e juntamente com o exercício educacional. A cadeia toda: educação e acesso ao livro, por meio de todos os seus atores é que possibilita o desenvolvimento cidadão do homem e do que é ser humano.

Nos idos dos anos 1970, o segmento de livros escolares iniciava uma prática de suplantar a livraria por conta de uma demanda assegurada pela adoção. A prática possui inúmeros resultados negativos para a coletividade, mas muito positivos ás empresas diretamente relacionadas ao negócio. Numa sociedade estritamente capitalista, as transações todas são negócios. Este negócio nos anos 1990 é que inaugurou as mega stores no brasil. Ao mesmo tempo em que as livrarias denunciavam no CADE o abuso dessas empresas nas escolas.

Abuso que o CADE na época, compreendeu como concorrência. Quanto mais concorrentes fecharem, mais forte a concorrência. Numa miopia de que os que reclamavam, reclamavam um feudalismo infantil. Sem notar o feudalismo existente.

O governo brasileiro se tornou no segundo maior comprador de livros no mundo, enquanto 50% dos alunos de oito anos são analfabetos. 50% do PIB do mercado do livro no brasil são compras governamentais, que sofreram um recente e duro golpe. Enquanto somente 38% dos universitários formados são capazes de compreender um texto.

As escolas eliminam o último ano para ensinar a passar para a faculdade, enquanto as faculdades perdem o primeiro ano da formação acadêmica para a retomada de matéria.

Professores veem propostas de aumento e investimento na carreira serem negadas enquanto chegam nas escolas, novos computadores, novos tablets e muitos livros. Nestas situações, memoráveis vezes, os equipamentos chegam sem o devido conteúdo ou sem o devido preparo da equipe educacional.

Monteiro Lobato disse: “um país se faz com homens e livros”. Notem, com homens primeiro e livros depois. Do contrário o livro se torna estéril. Vira pilha de objetos para sentar, prender portas, esquentar fogueiras...

Numa sociedade estritamente capitalista, tudo é negócio. Mas na vida humana, negócios são apenas um meio de troca, que não pode substituir os valores pelos quais nos constituímos.

A livraria não é apenas um lugar que vende livros e a escola não é apenas um lugar de guardar crianças. É preciso resgatar os significados.

Desde que nasci, escuto e vejo livrarias fecharem mais do que abrirem. Cada vez menos livrarias, menos acesso ao livro. A minha livraria, uma das fundadoras da ANL, é hoje a última livraria de mais de uma dezena que chegaram a coexistir na mesma rua. A pergunta que devemos responder, não é se queremos salvar esta ou aquela livraria. Mas se queremos que nossos filhos e netos tenham uma sociedade igual a nossa, ou melhor.

Por que a livraria é a capilaridade da produção intelectual de um país. É o meio pelo qual a liberdade de expressão transformada em objeto chega ao cidadão.

A 25 Convenção Nacional de Livrarias, ao adotar como tema “Crie na crise”, quer discutir como será a nossa sociedade daqui para frente. Não se trata apenas de usar a criatividade, mas como criar condições para que as livrarias continuem existindo e cumprindo com o seu papel.

Como ela pode continuar sendo economicamente viável e cumprir com sua função social e coletiva. Quais são os caminhos possíveis para que possamos, como coletivo, sobreviver aos tempos difíceis e construir uma realidade diferente no futuro.

A atual gestão, neste sentido, assumiu diversos compromissos. Reformulamos o estatuto e seu regimento interno. Iniciamos as necessárias adaptações da entidade aos seus propósitos e regramento. Em busca de fortalecer nossa representação regional e com isso poder responder com mais eficiências ás demandas, estamos nomeando os diretores-regionais que serão apresentados ao longo deste encontro.

Participamos da organização de evento que traz os autores para dentro das livrarias, o 1º Encontro Mundial de Invenção Literária (Emil), que começou ontem e levará até o próximo domingo mais de uma centena de autores nacionais e internacionais para 25 livrarias e 10 espaços públicos da cidade de São Paulo. Modelo este que vem sendo utilizado em vários países para a retomada e o fortalecimento, assim como a valorização efetiva de toda a cadeia do livro.

Está em andamento com o nosso apoio o programa Leia São Paulo, através do qual os professores municipais paulistanos receberam um voucher de R$ 50 para serem convertidos em livros nas livrarias. Iniciativa já conhecida no Rio com a AEL-RJ, reconhece a importância do professor e da livraria como instrumentos do contínuo saber.

A nossa brava participação no desenvolvimento do PL 49/2015 de regulamentação do varejo do livro, que reconhece a necessidade de contrabalancear o jogo de forças do mercado do livro para que o cidadão seja seu melhor beneficiário.

Essa discussão mais recente, vem sendo feita entre nove entidades nacionais do livro. Das quais, somente duas são de varejo, e dessas, somente a ANL representa o mercado de livrarias.

A reformulação do site da ANL, que entrará no ar nas próximas semanas, prevê diversos serviços práticos para os associados e ferramentas que melhoram a gestão desta entidade associativa, reduz custos e mais importante: terá uma busca por livrarias por proximidade, acervo e serviços.

Todas estas ações são importantes para a coletividade, mas ainda pequenas diante do necessário. É preciso haver um resgate coletivo, unindo forças e atores para se fazer o necessário. Não podemos e nem devemos esmorecer, o futuro está a nossa frente.

[13/11/2015 23:07:41]