Clubes de leitura: formação de leitores e bibliodiversidade
PublishNews, Kim Doria*, 26/08/2014
Responsável pelos eventos da Boitempo participou de curso ‘Princípios para um clube de leitura eficaz’ e conta como foi

“Só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso, numa sociedade estratificada deste tipo a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante.” (Antonio Candido, em O direito à literatura)

Esta citação de Antonio Candido pode ser entendida como um dos princípios fundamentais por trás do desenvolvimento de clubes de leitura, conforme o projeto desenvolvido por Janine Durand, coordenadora do Núcleo de Incentivo à Leitura do Departamento de Educação da Companhia da Letras. Durand apresentou sua experiência, ao lado de Vanessa Ferrari, editora da Companhia das Letras, em encontro organizado pelo PublishNews na Livraria Martins Fontes Paulista no último dia 09 de agosto.

A cultura dos clubes de leitura é fortíssima nos EUA e Inglaterra, onde se estima que cerca de 500 mil pessoas participam de clubes atualmente. Com a aquisição de 45% da Companhia das Letras pela Penguin em 2011, a editora investiu na implementação de clubes no Brasil, tendo desenvolvido de lá para cá grupos em livrarias, ONGs, bibliotecas, escolas, hospitais e instituições penitenciárias. O modelo do clube de leitura é simples e varia pouco de caso a caso – um grupo de até 20 pessoas se reúne mensalmente para discutir um livro em um encontro de aproximadamente uma hora conduzido por um mediador.

Posto que a média de leitura brasileira é muito pequena (cerca de sete livros lidos por ano, entre o pequeno contingente de leitores ativos), a formação de leitores é tarefa árdua e urgente para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Neste sentido, há tanto o que se fazer que não deveria haver motivo para competição entre editoras e instituições no que diz respeito à promoção de clubes de leitura. De acordo com Durand, os objetivos de um clube de leitura são: (1) promover a democratização do acesso à leitura; (2) contribuir para a formação de um público leitor, crítico e criativo; (3) incentivar o debate, interação e a socialização do conhecimento; (4) formar mediadores de leitura e autonomizar os clubes após um período de incubação (de duração variável, a depender da dinâmica do grupo); (5) ampliar o tempo de leitura e o repertório dos participantes, além de incentivar o desenvolvimento do prazer pela experiência de leitura.

Para editores que pretendam desenvolver um clube de leitura, Durand e Ferrari recomendam desenvolver um projeto piloto dentro da própria casa editorial, com os funcionários. É nesta primeira experiência que se aprende o que dá certo e o que dá errado, da seleção de livros à mediação. É preciso pensar as pessoas, não os livros – razão pela qual o projeto de desenvolvimento de clubes de leitura deve necessariamente pertencer ao setor de Educação nas editoras e nunca ao setor de Marketing. Durand é categórica: um clube de leitura não tem como dar certo se objetivo for vender um livro ou outro, desencalhar um título ou fazer outro pegar.

Para uma iniciativa de clube de leitura dar certo, a parceria deve se dar entre editora e instituição, não pode depender da vontade de um funcionário ou outro, mas ser bancada com fôlego e vontade pelos coletivos. Trata-se fundamentalmente de um projeto de experiência coletiva, de constituição de um grupo, onde os participantes deverão ler livros que não necessariamente leriam por conta própria e conquistar o direito de não gostar de um livro. Muitas vezes o desgosto por um livro mobiliza mais os participantes a se engajarem em discussões do que em torno de livros unanimemente bem recebidos – a conquista da voz diante da literatura é um dos mais revigorantes resultados da experiência, quebrando o tabu esnobe que a literatura por vezes cultiva. O clima dos encontros é próprio a um bate papo, em um círculo que tudo pode, embora haja a figura de um mediador – central na organização do clube de leitura.

Quem é o mediador? Geralmente algum funcionário da instituição (no caso de livrarias) ou da editora (em instituições), o mediador não é professor, nem palestrante; deve ouvir mais do que falar; entender o perfil do grupo; sugerir os livros (não é uma decisão pessoal, de gosto próprio, nem deve ser conduzida por objetivos comerciais, conforme comentário acima – é uma tarefa difícil, que deve saber instigar o grupo, propondo leituras diferentes das que estejam habituados); ler o livro para o encontro (mesmo que já tenha lido antes) e preparar questões para o debate (para ajudar a conduzir, longe de ser um ‘roteiro de leitura’); acima de tudo, deve ser um sujeito sensível que tem a tarefa de equilibrar as discussões. Deve-se evitar misturar funções: sobretudo em escolas, não é aconselhável que o mediador seja um professor ou avaliador. Vale notar que o investimento da editora em capacitação de seus funcionários para a função de mediação em clubes de leitura é altamente recomendável, pois leva a um consequente engajamento maior com o trabalho, aumentando os hábitos de leitura dos funcionários e colocando-os em uma oportunidade ímpar de entrar em contato com os leitores da editora – e de entendê-los.

Segundo Durand e Ferrari, o impacto da prática dos clubes de leitura é invariavelmente positivo. As duas são mediadoras na Penitenciária Feminina de Sant’Anna há alguns anos e percebem um salto impressionante de qualidade nas participantes, que frequentemente vão de não-leitoras a leitoras qualificadas em apenas um ano de experiência. Este investimento na formação de leitores é fundamental para a sociedade e para a bibliodiversidade brasileiras. Diante da constatação destes bons resultados, fica o convite para que as editoras invistam na divulgação e nas práticas educativas com tanto empenho quanto se dedicam a editar livros – para que o público leitor só faça crescer em quantidade, qualidade e autonomia.

* Kim Doria é responsável pela divulgação e pelos eventos da Boitempo Editorial.

[26/08/2014 00:00:00]