Publicidade
Publicidade
Mar, mangue, literatura e livros em Recife
PublishNews, 26/07/2013
Mar, mangue, literatura e livros em Recife

Uma das atrações surpreendentes para o turista que chega a Recife para alguns dias de visita é o Circuito da Poesia, um roteiro com estátuas em memória e homenagem a escritores, poetas e músicos cuja vida ou obra está associada à capital pernambucana.

O percurso se dá em torno do centro antigo da cidade e estão ali Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Luiz Gonzaga, Chico Science, Capiba, Antônio Maria, Joaquim Cardozo, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, Solano Trindade e Ascenso Ferreira.

Cada autor é lembrado por uma estátua bem descontraída, do artista plástico Demétrio Albuquerque, e que de alguma forma convida à aproximação e às vezes ao abraço e diálogo imaginário, contemplando a paisagem – e, ao lado, fica uma placa com um pequeno texto biográfico e um trechinho da obra, letra de música ou poesia.

Encontrar a memória e um fragmento da produção de cada um destes personagens, da poesia, da ficção, do modernismo, da música, é viajar um pouco pela espessa densidade cultural de Recife. As perspectivas de cada autor sobre a cidade são tão diferentes que o roteiro se torna uma peculiar iniciação à capital pernambucana, suas ruas e transformações urbanas, os agudos contrastes sociais, seus personagens, a cultura popular, o mar, o mangue.

A infância e a cidade do passado estão presentes nos versos de Manuel Bandeira, nascido em 1886, em “Evocação do Recife”, um dos seus poemas mais conhecidos (do livro Libertinagem, de 1930) “Recife / Não a Veneza americana / Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais / Não o Recife dos Mascates / Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois / - Recife das revoluções libertárias / Mas o Recife sem história nem literatura / Recife sem mais nada / Recife da minha infância / A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado / e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas.”

Imagens das transformações urbanas e sociais de Recife nos anos 1930 e 1940 estão em uma exposição no Museu da Cidade, localizado no Forte das Cinco Pontas, remanescente da batalha final entre holandeses e portugueses em 1654. Um precioso acervo fotográfico mostra inclusive cenas de marinheiros norte-americanos no carnaval nas ruas do Recife durante a Segunda Guerra Mundial.

A infância de Clarice Lispector em Recife, época de imigração, de dificuldades econômicas e da morte de sua mãe em 1930, foi um tempo duríssimo para a escritora. Na biografia Clarice, Benjamin Moser conta que um entrevistador perguntou a ela: “Sabemos que você passou toda a sua infância aqui no Recife, mas o Recife continua existindo em Clarice Lispector?” E ela respondeu: “Ele está todo vivo em mim”. Clarice viveu em Recife dos cinco aos quinze anos e chegou a frequentar a Livraria Imperatriz, fundada em 1930. “A primeira infância, com sua felicidade perdida e suas tragédias incontornáveis, nunca se afastou do seu pensamento”, escreveu Benjamin Moser nesta imperdível biografia, e ainda: “A decepção que vivenciara quando era uma menininha de nove anos lhe ensinara como são inúteis tais esforços poéticos. Escrever era a última coisa que poderia conduzir a um final feliz uma realidade inflexível”. “Criei-me em Recife”, escreveu Clarice, “e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira [...] Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas”.

A paisagem do mar, do mangue e os contrastes sociais da cidade têm muitas vozes. “Aqui o mar é uma montanha / regular, redonda e azul, / mais alta que os arrecifes / e os mangues rasos ao sul.”, escreveu João Cabral de Melo Neto (1920-1999) no poema “Pregão Turístico do Recife”. “Tô enfiado na lama / É um bairro sujo / Onde os urubus têm casas / E eu não tenho asas”, escreveu Chico Science em “Manguetown”.

Em diferentes locais da “Veneza americana” – estações de metrô e no aeroporto – há vitrines de autores pernambucanos com livros variados e bem expostos. Esse “particularismo” é muito bem-vindo, se é que se pode chamar Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto ou Clarice Lispector de literatura “local”. Em geral, as livrarias de rodoviária e de aeroporto, porta de entrada dos turistas, são pródigas em estabelecer um território nulo no qual é mais fácil encontrar algo como “dez lições para sua mente evoluir” do que um guia turístico ou obra de autor regional.

A “Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais”, de Bandeira, está presente no Instituto Ricardo Brennand, onde estão expostos livros sobre o Brasil holandês do século 17, como um tratado de botânica e crônicas de batalhas, além dos quadros de Frans Post e outros documentos, mapas e utensílios quer permitem uma rara visão daquela época. Os livros e as manifestações artísticas e científicas do colonialismo ilustrado de Maurício de Nassau são tão atraentes que quase somos envolvidos pela atmosfera de idealização deste intervalo colonial (1630-1654) representado pela figura de Nassau, como a fantasiar outro destino possível a um futuro Brasil que poderia, imaginariamente, ser mais industrioso, ilustrado, tolerante e liberal na religião (e sem Inquisição, claro) e na cultura.

Recife oferece vários outros passeios relacionados a livros, incluindo a pequena Rua Marquês do Recife, com suas bancas de sebos e discos de vinil. A literatura de cordel é oferecida em lojas de artesanato e bancas de jornal e constitui uma atração forte em vários lugares da cidade.

Estas impressões são apenas anotações de turista em um fim de semana prolongado, mas o fato é que mesmo um rápido e pequeno circuito turístico encontra em Recife livros e literatura em várias formas: da poesia modernista de Manuel Bandeira ao cordel, dos livros holandeses do século 17 à Clarice Lispector, de Gonzaga a Chico Science, de João Cabral ao frevo, do manguebeat às vitrines de autores pernambucanos. Testemunhos vivos e efervescentes da presença dos livros, da literatura, da música e da cultura pernambucana em um roteiro que poucas capitais no Brasil oferecem ao turista de forma tão fortuita e generosa.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

Publicidade

A Alta Novel é um selo novo que transita entre vários segmentos e busca unir diferentes gêneros com publicações que inspirem leitores de diferentes idades, mostrando um compromisso com qualidade e diversidade. Conheça nossos livros clicando aqui!

Leia também
Roney Cytrynowicz parte da polêmica lei polonesa que quer incriminar quem se referir aos campos de extermínio como poloneses e não nazistas para falar de dois livros essenciais para entender a questão
O que significa, em 2018, manter uma publicação impressa como o Almanaque Pensamento, que tem exatas 200 páginas de previsões astrológicas e outras previsões para todos os dias do ano?
Em sua coluna, Roney Cytrynowicz conta a história da escritora japonesa Mitsuko Kawai e a sua relação com a Biblioteca Amadeu Amaral localizada no bairro paulistano da Saúde
Em sua coluna, Roney Cytrynowicz pega carona no relançamento de 'A chave do tamanho', de Monteiro Lobato, pelo selo Globinho, para fazer uma reflexão do mundo atual
A partir de Primo Levi e Anne Frank, Roney Cytrynowicz analisa a difusão da fotografia do menino Omran Dagneesh dentro de uma ambulância após ser ferido no bombardeio de Alepo
Publicidade

Mais de 13 mil pessoas recebem todos os dias a newsletter do PublishNews em suas caixas postais. Desta forma, elas estão sempre atualizadas com as últimas notícias do mercado editorial. Disparamos o informativo sempre antes do meio-dia e, graças ao nosso trabalho de edição e curadoria, você não precisa mais do que 10 minutos para ficar por dentro das novidades. E o melhor: É gratuito! Não perca tempo, clique aqui e assine agora mesmo a newsletter do PublishNews.

Outras colunas
Escrito por Ligia Nascimento Seixas, em 'Pedro e a busca pela sua história', o personagem embarca em uma jornada inesperada para desvendar os segredos da sua própria vida, numa emocionante aventura literária
'Contra-coroa II' mergulha na trama de uma família real; obra foi escrita pela autora Amanda Grílli, que se destaca no cenário nacional independente trazendo uma mensagem de representatividade
Seção publieditorial do PublishNews traz obras lançadas pelas autoras Amanda Grílli e Ligia Nascimento Seixas
Em novo artigo, Paulo Tedesco fala sobre a importância da regulação da comunicação digital e ações para frear a mentira e a violência digital e informativa
Neste episódio nossa equipe conversou com Rita Palmeira e Flávia Santos, responsáveis pela curadoria e coordenadoria de vendas da livraria do centro de São Paulo que irá se expandir em breve com nova loja no Cultura Artística
Eu associo o deslocar-se à própria experiência da escrita e da leitura: ler ou escrever para sair de onde se está, para ir a algum lugar, mesmo que não saibamos que lugar é esse.
Alberto Martins
Escritor e artista plástico brasileiro
Publicidade

Você está buscando um emprego no mercado editorial? O PublishNews oferece um banco de vagas abertas em diversas empresas da cadeia do livro. E se você quiser anunciar uma vaga em sua empresa, entre em contato.

Procurar

Precisando de um capista, de um diagramador ou de uma gráfica? Ou de um conversor de e-books? Seja o que for, você poderá encontrar no nosso Guia de Fornecedores. E para anunciar sua empresa, entre em contato.

Procurar

O PublishNews nasceu como uma newsletter. E esta continua sendo nossa principal ferramenta de comunicação. Quer receber diariamente todas as notícias do mundo do livro resumidas em um parágrafo?

Assinar