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Outono, tradução e traição
PublishNews, 22/03/2013
Outono, tradução e traição

Às oito horas e dois minutos da manhã da quarta-feira passada, no instante do equinócio, quando dia e noite têm exatamente a mesma duração, teve início o Outono. Estação que mais parece um intervalo da natureza entre Verão e Inverno, entre a alegria do calor e do sol e a (suposta) tristeza do frio e dos dias nublados, o Outono é muitas vezes associado à decadência, declínio, ocaso e idade que precede a velhice.

No Outono, as folhas amarelam, as árvores se desfolham, o dia encurta, a noite se alonga, começa a esfriar e o inverno vai lentamente se aproximando. Em uma metrópole como São Paulo, com poucos parques, bosques, árvores, natureza, fica acentuada esta percepção do Outono como mera passagem entre estações mais marcantes. Nos parques da cidade, as folhas secas, que poderiam formar tapetes para caminhar ouvindo seu farfalhar, são limpas para que a grama ou a terra não fiquem cobertas.

A palavra e o conceito de Outono produziram uma interessantíssima controvérsia sobre a tradução do título do livro O Outono da Idade Média, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) publicado em 1919, depois traduzido para o francês como O Declínio da Idade Média (com este título, uma edição portuguesa circulou aqui até a edição de 2010 da Cosac Naify restaurar o Outono no título). Mas o que haveria de tão traiçoeiro em traduzir Outono por Declínio, sendo que o livro de Huizinga trata especificamente do século 15, ou seja, do fim da Idade Média e início do Renascimento?

O historiador medievalista Jacques Le Goff escreveu sobre isso em “A Propósito do Outono da Idade Média”, no livro O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval (Edições 70). “A escolha deste título [Declínio] é significativa. Refere-se a uma visão cara à história do século XIX: o Renascimento berço de um mundo novo, e este mundo novo só podia surgir da morte do mundo antigo, um mundo que tinha envelhecido, definhado exatamente naquele século XV, que é o espaço privilegiado de J. Huizinga”, escreveu Le Goff.

A discussão refere-se a uma nova concepção de Idade Média (e mesmo de história), que surgiu principalmente com a Escola dos Annales e o trabalho de medievalistas como Marc Bloch, Lucien Febvre, depois Braudel, Le Goff, George Duby e muitos outros que reconhecem em Huizinga um precursor e inspirador. Não mais tratada como Idade das Trevas ou intervalo morto entre a Antiguidade e o Renascimento, vários estudos mostram a Idade Média como uma época definida com vibrantes características e continuidades em relação ao Renascimento e ao mundo moderno, para além das divisões abstratas do tempo e dos períodos históricos. Da vida intelectual e universidades ao amor cortês, do conceito de trabalho às noções de poder, do fervor religioso às cruzadas, do imaginário da loucura aos estigmas e preconceitos, somos também herdeiros deste período.

Mas, afinal, por que Outono e não Declínio? O Outono, escreveu Le Goff em uma definição belíssima, “é a estação em que parecem exasperar-se todas as fecundidades e todas as contradições da natureza. É ele que, na arte, Eugenio d’Ors chama de fase barroca, aquela em que se manifesta a nu, sem máscara, a exaltação das tendências profundas de uma época. É essa exaltação que o torna tão fascinante. Pois que, como cantava Agrippa d´Aubigné: ‘Uma rosa de Outono é mais que qualquer outra requintada...’”.

Uma das características que Le Goff atribui a Huizinga é o uso de algumas palavras-chave, como sendas de interpretação deste século outonal, entre elas “sonho”, “visão”, “imagem” e “vida”. Dos dois primeiros há o sonho do heroísmo (do cavaleiro) e do amor (cortês), a visão da morte (tão bem retratada por I. Bergman em seu filme “O Sétimo Selo”) e a presença das emoções, reveladas ou escondidas, e dos fantasmas.

Quanto à vida, revela-se naquele Outono do século 15 um vitalismo que procura incorporar a biologia na história, em frases como esta que aparece logo na primeira página do livro de Huizinga: “A doença e a saúde apresentavam um maior contraste”. Não se tratava mais da concepção do corpo como mera morada da alma, envoltório do espírito, da doença como estigma, mas de uma transição para a descoberta do corpo, da sensorialidade, da saúde, da “materialidade” biológica da doença, da sensualidade, em um momento de invenção do indivíduo e de sua identidade pessoal, no nível da afetividade, da sensibilidade e da emoção.

Assim Huizinga começa seu livro em um capítulo intitulado “O teor violento da vida”: “Para o mundo, quando era quinhentos anos mais novo, os contornos de todas as coisas pareciam mais nitidamente traçados do que nos nossos dias” (Editora Ulisseia). Por isso, no século 15, escreveu Le Goff explicando o projeto de Huizinga e sua escolha por estudar este século, “num tal momento da história, os contrastes aparecem com uma evidência extraordinária, e é então que se pode melhor compreender o que é uma civilização; é então que vêm plenamente à luz as tensões que ali se albergam”.

Assim, em mais um Outono que recém se inicia por aqui, quando começarem a cair as folhas das árvores, e os dias encurtarem lentamente, talvez possamos viver e desfrutar desta estação em sua força e plenitude próprias, não como mera passagem ou intervalo entre calor e frio, verão e inverno, mas, conforme Le Goff, como estação em que parecem exasperar-se todas as fecundidades e todas as contradições da natureza, na qual evidentemente nos incluímos. E lembrar, com Huizinga, em 1919, ao revelar aquele Outono do século 15: “O contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, do mesmo modo que entre o Verão e o Inverno, acentuava-se mais fortemente do que nos nossos dias. A cidade moderna mal conhece o silêncio ou a escuridão na sua pureza e o efeito de uma luz solitária ou de um grito isolado e distante”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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