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A lei que não pega e a lei inútil – II
PublishNews, 28/02/2012
A lei que não pega e a lei inútil – II

Há alguns anos o deputado Eliene Lima (PP-MT) amanheceu cheio de boas intenções e com desejos de ajudar a preservação do meio ambiente. Pôs-se a trabalhar e redigiu e apresentou o Projeto de Lei 2308/2007, com dois artigos. No primeiro, estabelecia a obrigação das editoras usarem papel reciclado em pelo menos 30% de suas publicações. No segundo, tentava objetivar o que é papel reciclado: “é aquele proveniente do reaproveitamento de aparas produzidas pelos fabricantes, antes do consumo, ou a partir da coleta pós-consumo”.

O projeto rodou por comissões, teve audiência pública para debater seu conteúdo e, como tantas outras proposições legislativas, foi “esterilizado” nesse processo. A obrigação de usar papel reciclado virou “criação de linhas de crédito especiais para as editoras que assumirem um porcentual progressivo de papel reciclado”, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Já na Comissão de Educação e Cultura, o relator, Severiano Alves (PDT-BA), redigiu parecer contrário à aprovação por faltar “capacidade operacional de coletar aparas que pudessem ser transformadas em papel reciclado em quantidade suficiente para atender à demanda que seria criada pela alteração legal pretendida”. Essa dificuldade operacional havia sido assinalada na avaliação técnica oferecida pela Bracelpa na audiência pública convocada pela dep. Rebecca Garcia (PP-AM), a primeira relatora e quem inventou o incentivo creditício.

O projeto terminou arquivado no dia 1 de fevereiro de 2011, por não ter concluído sua tramitação na legislatura em que foi apresentado. Quem tiver a curiosidade de ver como se desenvolveu esse enorme esforço legislativo pode ir ao site da Câmara dos Deputados onde isso está relatado.

Na ocasião escrevi um artigo, publicado em vários sites, que pode ser visto ainda no Cultura & Mercado.

Eis que, semana passada, aqui no PublishNews, se dá a notícia de outro projeto de lei, parecido, apresentado pelo nobre Deputado pelo PTC do Maranhão, Edivaldo Holanda Júnior. Parecido, mas não exatamente igual. Desta vez Sua Excelência, certamente preocupado com a qualidade do ensino nas plagas de Gonçalves Dias, Arthur de Azevedo e José Sarney, poetas, dramaturgos e romancistas que ornam as letras pátrias, quer que o livro didático seja produzido com papel reciclado. E rapidinho:

“Art. 1º - O material didático adquirido para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e para o Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) deverá ser confeccionado com matéria prima reciclada.

Art. 2º - Fica estipulado prazo de tolerância de até 4 (quatro) anos, contados da vigência desta lei, no qual será admitido a utilização de até 50% (cinquenta por cento) de material não reciclado na confecção do material didático a que alude o artigo anterior.

Art. 3º - Ficam estipulados os seguintes percentuais mínimos de aquisição do material didático nos 4 (quatro) anos seguintes à vigência desta lei:

I – 25% (vinte e cinco por cento) no primeiro ano;

II – 50% (cinquenta por cento) no segundo ano;

III – 75% (setenta e cinco por cento) no terceiro ano;

IV – 100% (cem por cento) no terceiro ano.”

O negócio é pá, pum, tiro e queda, salvam-se as florestas e, ao estilo das touradas, o ínclito parlamentar dá “la suerte de matar”, enfia a espada e salva o meio ambiente. Bem a tempo de se apresentar aos eleitores como ecologista.

Salva?

O segmento do mercado editorial equivale a algo entre 30% e 40% do total de livros produzidos no Brasil. É livro pra caramba. Felizmente, o livro demora bastante para ser reciclado. Fica nas mãos dos leitores, das bibliotecas (infelizmente, poucas) e até nos gabinetes de autoridades. Ou seja, demora para voltar a ser apara. Inclusive o livro didático, que tem um período mínimo de uso estabelecido pelo MEC.

Para resumir a inépcia do projeto (tal como a do outro), começando pelo básico: o que é papel reciclado?

Será reciclado o papel que usa apenas uma porcentagem de celulose obtida de aparas na sua produção, ou o que é totalmente produzido a partir de aparas pós-consumo? Que porcentagem? Nos Estados Unidos, por exemplo, a norma técnica considera como reciclado o papel que tiver pelo menos 20% da celulose obtida por meio da reciclagem pós-consumo. No Brasil, a ABTCP (Associação Brasileira Técnica de Celulose e Papel) não elaborou a Norma Técnica Brasileira sobre o assunto. Continua em estudos.

O sítio da Cia. Suzano define seu produto “reciclato™” como: “papel offset 100% reciclado, é constituído por 75% de aparas pré-consumo e 25% de aparas pós-consumo, retiradas diretamente dos resíduos acumulados nas grandes cidades”.

A definição é uma amostra dos problemas: as fábricas de papel sempre reaproveitaram as aparas pré-consumo. Essas aparas são o resultado do corte das enormes bobinas que saem das máquinas e se transformam em resmas de papel plano em diferentes tamanhos, adaptados para diferentes máquinas e necessidades. Um procedimento que gera aparas imediatamente reaproveitadas, já que nenhum fabricante de papel joga dinheiro fora.

O uso de 25% de aparas pós-consumo faria o “reciclato™” ser enquadrado dentro das normas americanas. Mas, como o deputado não define nada, pois talvez não saiba do que está falando, se o fabricante desenvolvesse um papel usando 100% das aparas pré-consumo, esse também seria um produto “reciclado”. Ou seja, seria tão somente uma marca que utiliza uma prática corrente do setor de celulose e papel para desenvolver uma estratégia de marketing.

Tem mais. Segundo a Bracelpa, a associação dos fabricantes de papel, o Brasil está entre os países que apresentam maior índice de reciclagem desse insumo. Em 2009, 46% de todos os papeis usados no país foram enviados para reciclagem pós-consumo.

O que se fabrica com esse papel: basicamente embalagens (caixas de papelão), papel kraft e tissue, o papel de uso sanitário (que depois não pode mais ser reciclado, pelos riscos sanitários inerentes. Os coliformes fecais existentes nos livros se restringem a ideias de alguns autores). O papel para imprimir e escrever reciclado, dos quais o citado acima é apenas uma das marcas, constituem parte efetivamente insignificante do reuso do papel. Praticamente, só as grandes empresas que querem se passar por “verdes” o usam nas suas comunicações, e isso tem diminuído.

Segundo as avaliações de técnicos da ABTPC, a reciclagem de papéis na indústria e no comércio é altíssima e a margem para aumento não é grande. É possível reciclar ainda um pouco mais o papel de uso doméstico, principalmente de embalagens. Mas, se formos transportar aparas de regiões muito longínquas para os centros onde se produz papel, o gasto com combustível não apenas tornaria a operação antieconômica quanto aumentaria a emissão de carbono.

Ou seja, os índices brasileiros de reciclagem de papel são bastante bons. E pelas mesmas razões pelas quais são bons os índices de reciclagem de alumínio – latinhas de cerveja – e outros metais: a miséria e o subemprego proporcionam farta mão-de-obra para a coleta desses materiais. O preço de alguns metais é tão alto que, além da reciclagem normal, estimula o furto de cabos e fios elétricos para venda do cobre. Mais um dos nossos paradoxos: os índices de reciclagem são altos porque a miséria ainda é muita. Outro paradoxo é que o aquecimento da economia, gerando mais necessidade de embalagens, já quase provocou a importação de lixo, aparas de papel. Imaginem se o projeto do Edivaldo cola...

Ou seja: para aumentar o uso de papéis reciclados é preciso em primeiro lugar AUMENTAR O USO DO PAPEL FABRICADO COM CELULOSE VIRGEM. Para que haja reciclagem é preciso primeiro haver o uso da matéria prima básica.

É que, ao contrário do alumínio e de outros metais – e mesmo do vidro –, a celulose reciclada se degrada, não pode ser reaproveitada indefinidamente. Por isso mesmo em várias situações, para se conseguir uma pasta homogênea, a que é obtida a partir da reciclagem tem que ser complementada com celulose nova.

Em resumo, o projeto do nobre deputado pode ser bom para que ele se posicione na tentativa de se reeleger. É bom que ele demonstre essa preocupação. Mas é triste, muito triste, que esse projeto se some a outros que, ou são inúteis, ou “não pegam”, e certamente vai acabar arquivado na companhia de tantas outras bobagens nascidas na imaginação de congressistas que se debatem desesperadamente para achar o que fazer.

Porque a verdade é a seguinte: isso é fruto de um Congresso que não tem plena autonomia legislativa, no qual o orçamento é meramente autorizativo, e que vive como satélite do executivo (e agora até dos ilustres togados do magistério). É um dos sintomas das imperfeições de nossa democracia e uma evidência do quanto ainda precisamos caminhar para melhorar o funcionamento das instituições.

Mas, cuidado, outros projetos bem mais perigosos circulam pela Câmara e pelo Senado, e dizem respeito à liberdade de imprensa e ao direito de publicação, muitos dos quais apresentados por vociferantes defensores da moral e dos bons costumes. Ainda volto a esse assunto.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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