As dificuldades e alegrias de traduzir Clarice
PublishNews, Benjamin Moser, 17/11/2011
Benjamin Moser escreve para o PublishNews contando sobre as novas traduções em inglês de cinco romances da escritora

Como tantos escritores internacionais sabem, é bastante raro ter uma oportunidade de ser editado em inglês. Mais raro ainda – quase inédito – é ter duas.

Mas graças a editores dedicados em Londres e em Nova York, Clarice Lispector, a maior escritora do Brasil, vai ter essa segunda oportunidade.

Desde meus 19 anos, quando pela primeira vez encontrei sua última obra, A hora da estrela, num curso de português na faculdade nos Estados Unidos, queria fazer alguma coisa para torná-la mais conhecida fora de sua língua nativa. Mas não sabia como, e fiquei durante anos na dúvida.

Seria melhor começar com uma biografia, contando a história extraordinária de sua vida, na esperança de suscitar interesse? (Mas, porque tão pouca gente no mundo editorial anglófono sabia quem Clarice era, o risco era que ninguém editasse a tal biografia, ou que ela fosse editada quase em segredo e logo esquecida.)

Ou seria melhor traduzi-la primeiro, para deixar óbvia sua importância? (Mas, porque tão pouca gente no mundo editorial anglófono sabia quem Clarice era, o risco era que ninguém quisesse tais traduções. E, com várias obras já traduzidas, o projeto teria necessitado do apoio dos seus herdeiros e das editoras existentes.)

Finalmente, resolvi escrever a biografia, publicada no Brasil em 2009 com o título de Clarice, pela Cosac Naify. Barbara Epler, diretora da New Directions, logo entrou em contacto para falar de traduções. Pouco depois, Alexis Kirschbaum, da Penguin Modern Classics, em Londres, também queria participar: o projeto seria lançado simultaneamente no Reino Unido e nos Estados Unidos.

Para mim, era a realização de um sonho.

A New Directions publicava Clarice Lispector desde os anos oitenta, mas, como expliquei à Barbara, as traduções tinham grandes problemas, e em parte por isso nunca encontraram um grande público. O problema mais básico era o mesmo que encontrei quando meu livro foi publicado no Brasil.

A linguagem da Clarice é tão estranha e inesperada que, desde o início de sua carreira, nos anos quarenta, muitos críticos brasileiros acharam que estava, de certa forma, errada.

Falava-se que Clarice era estrangeira (ela de fato nasceu na Ucrânia, em 1920, mas chegou ao Brasil na sua primeiríssima infância) ou que era, como falou sua vizinha no Rio, Elizabeth Bishop, mais ou menos inculta (ela na verdade era uma das mulheres mais formadas e viajadas de sua geração).

Muita gente tentou, pois, “corrigir” seu estilo. Nada menos que cinco revisores trabalharam com minha biografia na sua tradução brasileira – e todos tentaram corrigir seus supostos erros. Mesmo quase setenta anos depois de Perto do coração selvagem, um dos pontos mais altos do cânone nacional, ela ainda soa esquisito.

Algumas traduções, como a de A hora da estrela, que acabo de lançar numa nova versão, levaram essa tendência a extremos. Preencheram todas as lacunas do texto e deixou suas surpreendentes frases pesadas e chatas.

Como expliquei a Barbara e a Alexis, havia outro problema também. As traduções foram feitas em diferentes épocas por pessoas muito diferentes. A voz de Clarice, desde os primeiros contos escritos na adolescência até as últimas linhas rascunhadas em maços de cigarro e cheques cancelados, é inconfundível. Em inglês, portanto, ela não só tinha que soar como Clarice em português. Também tinha que falar com uma única voz.

Resolvemos, pois, que eu traduziria A hora da estrela,e logo convidaria outros tradutores para tomar conta dos outros quatro livros que inaugurariam a série.

Johnny Lorenz, um professor filho de brasileiros na Montclair State University, foi escolhido para fazer o póstumo Sopro de vida; Idra Novey, poeta que dirige o Center for Literary Translation na Columbia University, A paixão segundo G.H.; Stefan Tobler, inglês paraense que dirige a editora And Other Stories, para traduzir Água viva; e Alison Entrekin, conhecida tradutora australiana de Chico Buarque e Paulo Lins, para Perto do coração selvagem.

Optamos por gente jovem: há urgente necessidade de mais tradutores do português, e pensamos que, dando a oportunidade de traduzir uma autora clássica a um novo grupo, ampliaríamos o círculo e daríamos um ímpeto para outros editores traduzirem mais literatura portuguesa e brasileira.

Minha tarefa agora é coordenar a edição e publicação das traduções. O trabalho é o mesmo: têm que soar como Clarice (e até os melhores tradutores tentam, mesmo inconscientemente, “arrumá-la”!) e têm que ser parecidas. Não é fácil quando lembramos que não somente estamos falando de quatro personalidades literárias diferentes, mas também de pessoas que falam três dialetos distintos da língua inglesa: inglês, americano e australiano.

Estamos trabalhando muito, mas estamos empolgados por achar que esta é a mais importante obra de retradução de um autor latino-americano desde o lançamento, há uma década, das novas traduções de Jorge Luis Borges.

Elizabeth Bishop famosamente disse que Clarice Lispector era “melhor do que Borges”. É claro que tais comparações são absurdas: escritores não podem ser julgados como atletas. Mas estamos convencidos de que nosso trabalho levará muita gente a dar uma primeira olhada – ou mesmo, quem sabe, uma segunda – em uma artista icônica do século vinte.

[17/11/2011 01:00:00]