O pulo do gato
PublishNews, 18/05/2012
O pulo do gato

Muitos anos atrás, ganhei de um amigo o livro de cozinha de uma chef badalada. Como eu conhecia seu restaurante e gostava dos pratos que ela criava, abri o volume com entusiasmo, querendo aproveitar suas ideias e, quem sabe, reproduzir algumas delícias em casa. Que decepção... Produtos apareciam na lista de ingredientes e sumiam no modo de preparo, os líquidos eram medidos ora em xícaras, ora em litros, algumas instruções se resumiam a “misture tudo” e outras se limitavam a frases genéricas. Diz o ditado que, para um bom entendedor, meia palavra basta, e eu tendo a concordar. Quem já tem uma certa experiência no fogão, ou na leitura de receitas, até consegue intuir os trechos que faltam nas explicações dessa chef. Mas nem o melhor entendedor, ou o cozinheiro mais experiente, se livra da sensação de ter sido enganado. No mínimo, tratado com descaso.

Lembrei dessa história na semana passada, ao ler dois artigos no Guardian e na Slate. No jornal britânico, o escritor Nicholas Clee afirma que quem consulta um título para seguir as receitas ao pé da letra, por mais esmiuçadas que sejam, pode acabar frustrado, pois de uma casa para outra as temperaturas do forno e do fogão variam, os equipamentos são diferentes, a qualidade da água não é a mesma, e tudo isso influencia o resultado. Segundo ele, os mestres-cucas caseiros devem tentar entender como as coisas funcionam – por que, por exemplo, é preciso juntar o óleo gota por gota quando se prepara maionese – em lugar de apenas seguir as explicações. Na verdade, ele quer é defender seu livro, o recém-lançado Don’t sweat the aubergine (Black Swan, 288 pp., 8,99 libras), que trata de procedimentos básicos da culinária. Clee lembra que até surgir Elizabeth David (1913-1992), a escritora que apresentou a cozinha mediterrânea para a Inglaterra, nos anos 1950, as obras se valiam muito mais do conhecimento dos leitores do que da precisão nas instruções – como fez a chef que eu citei no começo do texto. Diz, também, que receita muito cheia de detalhes acaba ficando chata.

Difícil concordar com ele. Claro que conhecer alguns processos ajuda na hora de cozinhar. Claro, também, que não se trata de descrever tudo de maneira exagerada, mas de ser claro e coerente, levando em consideração os leitores que, muitas vezes, não estão familiarizados com termos e técnicas culinárias e que, ainda assim, querem se orgulhar da refeição que prepararam. É importante, principalmente, que os autores sejam sinceros e que não escondam o pulo do gato – se não for assim, de que servem seus livros? Do contrário, correm o risco de ser vistos como enganadores, a exemplo do que diz o indignado escritor e jornalista Tom Scocca no artigo da Slate.

Scocca não se conforma quando encontra uma receita – a maioria, segundo ele – que indica o tempo errado para dourar e caramelizar cebolas. “Cebolas tenras e douradas em 5 minutos. É mentira. Cebolas totalmente caramelizadas em mais 5 minutos. Também é mentira”, diz. “Cebolas não ficam caramelizadas em 5 ou 10 minutos. Nunca ficaram, e nunca ficarão – mas os escritores não param de fingir que é assim.” Em seu divertido relato, ele conta o que acontece quando tenta aprontar o legume da maneira sugerida por uma receita publicada no New York Times. Faz a tentativa com um tipo diferente de cebola, com azeite, com manteiga, em fogo alto, em fogo médio... Não dá certo. E por que tanta gente insiste em maquiar o tempo? De acordo com Scocca, é para não assustar os leitores, já que o alimento pede pelo menos uns 40 minutos na panela para ficar perfeito. Ou, numa justificativa um pouco mais cínica, para não comprometer a promessa feita por diversos títulos recentes, a de ensinar pratos que ficam prontos em até meia hora.

De nada, porém, adianta ser truqueiro. Mais cedo ou mais tarde, os leitores descobrem.

[17/05/2012 21:00:00]