
Primeira mulher negra a ser admitida como imortal da ABL na história, a autora da obra-prima Um defeito de cor (Editora Record, 2006) vendeu, em quase vinte anos, significativos 200 mil exemplares – e Ana Maria acredita que o livro ter se tornado enredo da Portela no Carnaval de 2024 alavancou o interesse pela história de Kehinde, que se esparrama por 965 páginas fabulosas e foi lida até pelo presidente Lula da Silva.
Na coletiva de imprensa, um pouco antes da cerimônia, foi Ana Maria quem perguntou aos jornalistas: “Por que demorou 128 anos para que uma mulher negra estivesse aqui, numa cadeia de tantas outras que, com certeza, já teriam capacidade e vontade?”. Sinal de que o mundo está mudando, no mínimo. Outro assunto que reverberou desde a entrevista foi o fardão, feito pelas costureiras da azul e branca de Madureira.
Ana destacou que “o processo de confecção do fardão é muito caro para o escritor” e viu valor em “levar para a escola de samba que deu uma visibilidade ao livro que nenhuma festa literária deu". Ela garante - e a gente concorda - que "ser enredo da Portela tirou o livro da bolha”. Com esse gesto político, Ana Maria vai além e valorizando o trabalho dos artistas periféricos que colocam a sua arte à serviço do Carnaval.
Nesse sentido, vale lembrar também da exposição homônima ao livro, que atraiu um público numeroso e encantado em sua turnê – iniciada no Rio de Janeiro em 2022, com passagem por Salvador em 2023 e em cartaz em São Paulo em 2024. A obra de Ana Maria, escrita diante do crivo de toda a sua família – emocionante ver os seus pais, Helia e Ivan, orgulhosos da cria na plateia esta noite - realizou o milagre de sair, de fato, do papel e tocar a vida dos leitores.
Ana Maria se declarou leitora apaixonada dos livros de Eliana Alves Cruz, Conceição Evaristo, Jarid Arraes, Itamar Vieira Jr, Paulo Lins e Jeferson Tenório. São autores já consagrados, que vem encontrando os seus leitores em tantos eventos literários pelo país, criadores de obras ainda em construção. Sobre a mineira Conceição, dos nomes mais incensados nas letras da atualidade, que concorreu a uma vaga na ABL há sete anos e não foi escolhida, Ana Maria foi cirúrgica: “Acredito que a discussão em torno da candidatura da escritora Conceição Evaristo, em 2018, contribuiu para estar aqui hoje”, sentenciou, e foi muito aplaudida.
"Olha, pra mim foi surpresa. Mas acho que isso significa que eu fiz história. Muito grata à Ana por ter lembrado disso. Talvez a minha história seja fora da Academia, mas já está feita", comentou Conceição, com exclusividade ao PublishNews, na festa que se seguiu à cerimônia - um jantar com mesas e cadeiras, quebrando o protocolo da ABL, que sempre ofereceu um coquetel em pé. E, realmente, o lugar ao sol de Conceição já foi mais do que conquistado, publicando por pequenas casas editoriais e acreditando no que a sua escrita precisa dar conta.
Outra que conversou com o PN foi Eliana Alves Cruz, escritora que já caiu totalmente no gosto dos leitores e vem produzindo uma obra consistente e encantadora. Para ela foi "muito bonito e corajoso o discurso de Ana Maria essa noite. Um discurso potente, que celebra a presença feminina e negra, que ainda é pouca, mas que nós estamos chegando. Fiquei muito feliz por Conceição, por Leda Maria Martins, por Nei Lopes. E por fazer parte dessa celebração em família".
Ana Maria pesquisou vida e obra de todos os acadêmicos que a antecederam na cadeira 33 e fez reverência ao trazer à plateia tantas informações até minuciosas sobre eles - Domício da Gama, Fernando Magalhães, Afrânio Coutinho e Evanildo Bechara foram alguns deles. Falou, com entusiasmo redobrado, sobre Julia Lopes de Almeida (1862-1934), escritora e jornalista por mais de 40 anos, e pedra essencial na fundação da ABL. Julia foi excluída do grupo fundador apenas por ser mulher e cedeu o seu lugar na casa ao marido, o português Filinto de Almeida (1857-1945).
Outras primeiras mulheres na casa não foram esquecidas, como Rachel de Queiróz (1910-2003) e Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Toda a noite de posse de Ana Maria Gonçalves foi dedicada a lembrar de quem pavimentou a literatura, a ABL e a sua própria trajetória até esta noite de coroação de uma vida que não foi linear nem fácil, como as histórias mais saborosas que encontramos por aí. Pelo contrário. Ana Maria teve muita coragem de ir além e promover revoluções em sua vida íntima para encontrar o seu caminho na literatura.
O painel em néon com a frase “Uma mulher negra feliz é um ato revolucionário” foi projetada no telão. Ela é da artista visual Juliana Borges e arrepiou os presente ao ser exibida ao som do clássico “Embala eu”, na voz agreste de Clementina de Jesus (1901-1987), um pouco antes do discurso de posse da nova imortal, que durou meia hora e arrebatou a plateia. Ana Maria assinou a sua posse à caneta pontualmente às 20h40, diante de um público em festa e devoção. É impossível rebobinar tudo, mais eis uma das muitas versões que serão contadas sobre esta noite - memorável, sim, para a história da literatura que nasce e amealha leitores no Brasil.






