Feira de Frankfurt começa com defesa do conteúdo criativo na era da IA
PublishNews, Guilherme Sobota, 14/10/2025
Organização do evento também fez questão de ressaltar a importância dos encontros ao vivo

Juergen Boos, diretor da Feira do Livro de Frankfurt, na coletiva de imprensa desta terça (14) | © Guilherme Sobota / PublishNews
Juergen Boos, diretor da Feira do Livro de Frankfurt, na coletiva de imprensa desta terça (14) | © Guilherme Sobota / PublishNews
FRANKFURT – A Feira do Livro de Frankfurt realizou sua cerimônia de abertura nesta terça-feira (14) tomando forte posição contra a concentração de poder das empresas de tecnologia na era da inteligência artificial, bem como defendendo a importância de encontros ao vivo para o desenvolvimento do setor editorial e criativo no globo.

O diretor da Feira, Juergen Boos, trouxe a reflexão para o palco da abertura: “quem somos nós? o que nos define?”. Para ele, a resposta é clara: “a Feira conecta pessoas de todo o mundo. Essa é a nossa marca. Num mundo em que as fronteiras estão ganhando poder, a habilidade de conectar pessoas também se tornou política. Enfrentamos essa tarefa todos os anos, e agora mais do que nunca”, disse, na cerimônia. Nas últimas semanas, alguns autores filipinos – o país convidado de honra desta edição – cancelaram sua participação chamando por um boicote, em protesto ao apoio da Alemanha a Israel nos últimos meses. Apesar disso, o assunto foi abordado de maneira lateral neste primeiro dia.

O que deu mesmo o tom da abertura foi o papel de um evento como este na era da inteligência artificial. A Feira começa oficialmente nesta quarta-feira (15) e vai até o domingo (19). O programa profissional do maior encontro editorial do mundo vai discutir com atenção nos próximos dias como pensar a IA em um momento de rápidas e intensas transformações, tanto nas tecnologias quanto nas suas consequências sociais – entre outros assuntos.

Todos os eventos do calendário profissional podem ser encontrados no "Calendar of Events" online em https://www.buchmesse.de/events, bem como no aplicativo da Frankfurter Buchmesse.

A cerimônia de abertura também teve discursos em defesa da democracia e do valor da literatura enquanto ferramenta de transformação social. O ministro da Cultura alemão, Wolfram Weimer, fez uma defesa da remuneração a editores e criadores pelos atuais modelos de treinamento de modelos de inteligência artificial, bem como instigou os presentes a monitorar a situação dos oligopólios das empresas de tecnologia que controlam as ferramentas.

“Este futuro da IA, que explora e nivela tudo, pode destruir o poder da criatividade. O termo ‘mineração de dados’ parece que dá direito às empresas a trabalhar numa mina, mas eles estão fazendo essa ‘mineração’ com textos e criações. As gigantes de tecnologia americanas e chinesas estão alimentando seus empreendimentos com o conteúdo e as conquistas criativas dessa maneira nos últimos cinco anos, e eles nunca pediram nossa permissão. Culturas inteiras estão sendo exploradas, trata-se de um tipo de colonialismo digital que não podemos mais aceitar. Foi por isso que falamos com CEOs de big techs em Berlin na semana passada e dissemos claramente que esse tipo de divisão de trabalho não é mais desejável. Precisamos de novas formas de trabalho. Se eles estão criando monopólios, precisamos destruí-los e criar regulações e proteções aos direitos autorais”, complementou, para aplausos entusiasmados. Ele citou ainda o episódio em que Donald Trump nomeou o Golfo do México como Golfo da América, o que foi prontamente incorporado pelo Google no seu mapa, como um breve exemplo do que pode acontecer se o capital das empresas se juntar ao poder político.

Representantes do governo alemão e filipino na abertura da Feira de Frankfurt 2025 | © Zino Peterek / Frankfurter Buchmesse
Representantes do governo alemão e filipino na abertura da Feira de Frankfurt 2025 | © Zino Peterek / Frankfurter Buchmesse
A senadora das Filipinas, Loren Legarda, falou em seu discurso sobre José Rizal, considerado um dos heróis do país. Rizal viveu na Alemanha, em Heidelberg, onde conheceu a literatura alemã, especialmente os trabalhos de Friedrich Schiller, dramaturgo que pregava a liberdade. O filipino também traduziu obras alemãs para o tagalo, um dos idiomas do país asiático.

“A imaginação pode ser ameaçadora para tiranos porque fala de liberdade, e para cínicos porque insiste na esperança”, disse a senadora, representando as Filipinas. "É um fogo que queima as diferenças, ilumina os cantos em que a injustiça se esconde. Por meio da nossa extensa programação, nos juntamos aqui para nos perguntar que tipo de imaginação pode surgir do poder das palavras, no maior encontro de ideias e histórias do mundo."

Mais cedo, em coletiva de imprensa, a diretora da Associação Alemã de Editores e Livreiros, Karin Schmidt-Friderichs, também criticou duramente a concentração de poder nas big techs. “Alguns poucos bilionários escolhem algoritmos sem seguir regras e sem responsabilidade sobre os conteúdos que publicam e sustentam. Eles asseguraram poder para si mesmos, e enquanto alguns políticos celebram esse tipo de progresso, 20% das pessoas neste país não conseguem entender bem textos escritos, ficando sujeitos a influências e emoções. A sociedade está ameaçada com a IA na mão de oligopólios irresponsáveis. Inovação também requer fair play, e deve ser feita para servir a sociedade, e não o contrário”, afirmou.

O mais recente prêmio Nobel de Literatura, László Krasznahorkai, era esperado em Frankfurt, mas, segundo a organização do evento, não pôde comparecer por motivos de saúde. Em seu lugar, na coletiva de apresentação, a Feira deu um salto: escolheu uma autora alemã nascida em 1998, Nora Haddada, autora de Blaue Romanze (Fischer). A escolha de uma autora bastante jovem para uma apresentação tão prestigiosa da Feira trouxe um bem-vindo frescor de perspectivas. Em cerca de 10 minutos, a escritora tentou passar uma mensagem de que as pessoas devem poder falar o que quiserem sem o temor de instituições ou da imprensa, por exemplo.

“Muito aconteceu nos últimos anos”, iniciou. “Foi em 2016 que vimos que as coisas estavam indo para o buraco. A extrema-direita começou a crescer, veio a Covid, depois a Rússia atacou a Ucrânia, houve o ataque injustificável do Hamas e o genocídio em Gaza. Nos últimos meses, vimos na mídia alemã um discurso psicótico tentando encobrir ações de Israel. Para mim, um dos momentos decisivos foi perceber como tudo isso aconteceu tão rápido e tão sem resistência. Ainda estou com medo. Claro que houve diferentes vozes se colocando na discussão, mas eu quero focar no silêncio, porque foi isso que dominou. É muito preocupante. O ponto é que somos escritores, não temos nada a perder, especialmente na minha geração. Nós estamos cientes do desastre climático, dos problemas de imigração, da crise do capital. Nós já estamos mortos: vocês não podem nos matar. Temos humor, amizades e histórias, em outras palavras, temos a literatura. Enquanto o cinema e as artes precisam de muito, nós não precisamos de quase nada: apenas comida, bebidas e uma casa. Não precisamos dos bilionários. Isso é ótimo. Podemos provocar, não podemos ser covardes. Escritores e editoras não podem ter medo de se envolver em polêmicas. Quando a merda bater no ventilador, precisamos ter integridade para dizer que ainda estamos aqui”.

Da esquerda: Vanina Colagiovanni (da editora argentina Gog & Magog), Mehar Anaokar (editora da Profile Books, Reino Unido), Karin Schmidt-Friderichs e Nora Haddada | © Frankfurter Buchmesse
Da esquerda: Vanina Colagiovanni (da editora argentina Gog & Magog), Mehar Anaokar (editora da Profile Books, Reino Unido), Karin Schmidt-Friderichs e Nora Haddada | © Frankfurter Buchmesse
*O jornalista viajou com o apoio do CreativeSP, programa da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo e da InvestSP, agência de promoção de investimentos vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico.

[14/10/2025 15:54:23]