Três perguntas do PN para Ricardo Araújo Pereira
PublishNews, Beatriz Sardinha, 12/09/2025
Escritor e humorista português participou da programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty

O escritor e humorista português Ricardo Araújo Pereira lançou no brasil o livro Não edifica nem destrói (Tinta-da-China Brasil). O autor português esteve na programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Com formação em Comunicação Social na Universidade Católica Portuguesa, Ricardo tem uma carreira que transita entre televisão, rádio, literatura e teatro. Um de seus primeiros trabalhos de mais sucesso aconteceu em 2003 com o grupo Gato Fedorento.

No Brasil, Ricardo escreve semanalmente na revista Visão e no jornal Folha de S. Paulo. Ele também é o responsável por coordenar a coleção de Literatura de Humor da Tinta da China. Outros títulos publicados no Brasil são: as coletâneas de crônicas Se não entenderes eu conto de novo, pá! (2012) e Estar vivo machuca (2022), e os ensaios “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”.

Ricardo Araújo Pereira respondeu a três perguntas do PN.

PublishNews — Você gosta do Brasil? Qual é a sua relação com o país?

Ricardo Araújo Pereira — Eu adoro o Brasil e eu penso nisso muitas vezes. Sou colonista da Folha porque há 500 anos, dois homens muito poderosos, provavelmente os mais poderosos do mundo nessa altura, juntaram-se à frente de um mapa e fizeram um risco e disseram: esta metade do mundo fica para mim e esta metade fica para si.

O homem que era meu compatriota fez o risco de propósito num sítio para incluir o território que hoje é o Brasil no nosso lado do mundo e é por causa desse risco que eu escrevo no maior jornal brasileiro e provavelmente do hemisfério ou seja, eu escrevo, eu falo a mesma língua que se fala num país enorme, noutro continente e noutro hemisfério, porque há 500 anos um homem riscou um mapa. Também é extraordinário para mim que há 2000 anos uma pessoa que estivesse à beira do, como se chama aquele rio que desagua em Roma, seja qual for esse rio, e usava a palavra grátis, que não é.

E dois mil anos depois, nas margens do rio Amazonas, noutro continente, noutro hemisfério, alguém diz a palavra grátis e sabe o que ela significa, é a mesma palavra. Essa palavra foi, pode não parecer muito, mas o facto da língua, dessa língua estranha que nós falamos, ter essa qualidade, ou seja, ter palavras em comum ainda com uma pessoa que há dois mil anos vivia noutro continente, noutro hemisfério e não fazia ideia da existência deste lugar em que estamos hoje, isso é extraordinário, não é?

Ah, mas deixe-me dizer que eu acho que o Brasil, eu acho que vocês brasileiros e o Brasil são iguais a nós, portugueses, sem querer ofender, acho que são iguais a nós, vezes 20. O território, a população é 20 vezes maior, ou seja, tudo aqui é parecido com o que existe em Portugal, mas é 20 vezes, é uma escala 20 vezes superior, para o bem e para o mal. E por isso isso é extraordinário.

Eu fico muito contente quando aterro no Brasil, porque estou muito longe de casa e, no entanto, eu sinto-me em casa não apenas porque eu entendo a língua que está escrita em todo o ar, mas também por causa de um certo modo de ser, de uma certa mentalidade. Por exemplo, eu entro no táxi e digo ao taxista, curiosos vocês, todos os carros têm vídeos filmados, incluindo o da frente, o vídeo da frente, em Portugal isso é proibido. E ele disse, é aqui também. E essa ideia de que uma coisa que é proibida se faz na mesma é muito portuguesa.

PN — Acho que essa altura do campeonato já chegou em você a piada da internet sobre Portugal ser a Guiana brasileira. Eu queria perguntar o que você acha, especificamente do humor entre Brasil e Portugal?

RAP — Eu acho isso muito divertido, sabe, e eu acho que isso é um ótimo exemplo de como o humor, mesmo quando é aparentemente, digamos, agressivo, aproxima mais do que afasta. Há várias maneiras de entender isso: A ideia de Portugal ser uma Guiana Brasileira. Uma é ficar muito ofendido. Outra é dizer: que raciocínio interessante. É um raciocínio humorístico muito divertido.

Outro dia vi um estudo sobre piadas de polonês nos EUA, que são basicamente as piadas de português no Brasil. O estudo indicava que essas piadas só começaram nos EUA depois da comunidade polonesa estar completamente instalada. Ou seja, não era uma coisa de agressividade e de repulsa, era de agora que vocês estão instalados era uma coisa de acolhimento. Deixe-me ver se eu lhe consigo dar um exemplo.

Há uma piada de português que diz assim: quando Jesus, naquele célebre episódio diz: Quem nunca errou atira a primeira pedra, o português pega numa pedra e acerta mesmo na testa. E Jesus fica perplexo e diz: tu nunca erraste? E o português diz: a esta a distância nunca.

A questão é que essa piada recorre a um estratagema humorístico muito conhecido, que é, o português tem e não tem razão, na verdade o raciocínio do português está correto. A palavra errar tem um duplo significado. Se o Messias quer ser mais bem entendido, ele deve ser mais específico, porque senão ela pode ser entendida como o português entendeu.

PN — De que forma você vê a palavra, a língua e o humor como formas de ver o mundo?

RAP — Pois é, eu diria que, eu não sei se conhece isto do mundo da linguística, há uma hipótese, um conceito que se chama a hipótese Sapir Worth, que diz o seguinte, diz que o modo como nós falamos influencia o modo como nós conhecemos o mundo. Isso é uma hipótese muito sedutora ao que parece, embora completamente errada. É uma hipótese muito sedutora porque realmente a gente simpatiza com a ideia de que se eu falo desta maneira, isso significa que eu vejo o mundo desta maneira. Normalmente o que acontece é o contrário. Por exemplo, uma coisa que diz muitas vezes é, ah, o povo Inuit, aqueles que vivem no polo, têm 20 palavras para neve e isso indica que a neve é muito importante para eles. Nós temos uma... ao que parece não são 20, mas vamos de produção. Têm 20 palavras para neve, logo a neve é muito importante para eles. Eles têm uma palavra para neve quando está quase derretida, para neve quando está fresca, para neve quando está no parabrisas de um carro. Esse raciocínio, eles têm 20 palavras para neve, logo a neve é muito importante para eles, está invertido. É, a neve é muito importante para eles e é por isso que eles têm vinte palavras para a neve. Não é o contrário, não é a língua que determina a maneira como eles vêm as coisas, é o contrário. É a maneira como eles vêm as coisas, determina a língua deles.

O fato de a gente achar que é o contrário, ter essa tentação de achar que é o contrário, provoca problemas, porque faz com que as pessoas concluam que se a maneira como eu falo condiciona o modo como eu vejo as coisas, se eu intervir na maneira como eu falo, eu mudo a forma como eu vejo as coisas. E isso não é assim. E é isso que faz com que, por exemplo, a gente assista a fenômenos linguísticos, como por exemplo a gente diz assim, se calhar velho é uma palavra demasiado dura e mal-educada, para designar um grupo de pessoas que têm uma idade avançada.

E por isso nós dizemos, se trocarmos a palavra de velho para idoso. E, de repente, com o passar do tempo, a palavra idoso adquira o peso que a palavra velho tinha. E a gente diz: já sei, o melhor é sênior! Sênior é que é bom. E vai acontecer o mesmo com a palavra sênior. Porque o problema é que esse conjunto de pessoas que a gente chama velhos, ou idosos, ou senhores, têm problemas. Eu sei porque estou a ficar velho. É chato ficar velho. A palavra não tem culpa nenhuma. A palavra adquire, por contágio, os problemas que o grupo de pessoas que ela sofre tem.

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