Programa Minha Biblioteca: interrupção sem justificativa causa indignação entre editoras e é levada ao Ministério Público
PublishNews, Guilherme Sobota, 17/04/2025
Segundo estimativas, a Prefeitura de São Paulo deixou de comprar 10 milhões de livros com a paralisação do projeto

Prefeitura não deu previsão de retomada do Programa Minha Biblioteca | © Edson Lopes Jr./SECOM
Prefeitura não deu previsão de retomada do Programa Minha Biblioteca | © Edson Lopes Jr./SECOM
A brusca interrupção do Programa Minha Biblioteca – projeto da Prefeitura de São Paulo para compra de livros e doação aos alunos da rede pública de ensino – vem causando indignação entre editores e profissionais do livro. Agora, uma notificação oficial ao Ministério Público de São Paulo sobre o assunto foi vinculada a um inquérito civil em andamento, proposto em 2022 pelo Conselho Regional de Biblioteconomia. O inquérito é realizado pelo Grupo de Atuação Especial de Educação – GEDUC (Núcleo Capital).

Em 2023, o edital de chamamento público do projeto Minha Biblioteca foi publicado, as inscrições e a seleção dos títulos ocorreram normalmente e as editoras esperavam que a aquisição fosse realizada no início de 2024. O que até agora não ocorreu – e nem outros editais foram publicados. Em comparação, a Prefeitura investiu R$ 62 milhões em compras em 2022, de 950 títulos diferentes. Segundo a estimativa do Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (Sindsep), a Prefeitura deixou de comprar 10 milhões de livros com a interrupção do projeto.

Segundo a Prefeitura, o Minha Biblioteca visa promover e ampliar a prática leitora dos estudantes por meio do contato com os livros, além de estimular a inserção e a participação das famílias no processo de formação desses estudantes como leitores. Como o nome do programa já diz, as compras eram voltadas para que cada aluno formasse a sua própria biblioteca, em casa – a presença do livro no ambiente familiar é apontada por especialistas como elemento fundamental na formação de leitores. Fora o impacto social, as consequências para editoras que contavam com o investimento podem ser bastante significativas.

“No Brasil, o governo ainda é responsável por parte muito significativa da compra de livros, por possuir um dos sistemas públicos educacionais mais amplos do mundo”, explica a diretora editorial da Jandaíra e presidente da Liga Brasileira de Editoras (Libre), Lizandra Magon. “Então qualquer mudança ou interrupção nesses programas afeta as editoras, especialmente as pequenas e médias que dependem de processos de compra transparentes e com seleções tão qualificadas como a Prefeitura de São Paulo vinha realizando. Porque é importante destacar que o Minha Biblioteca realmente permite que livros de editoras menores cheguem às mãos dos alunos. E essa é a finalidade do programa: que os alunos da rede pública tenham acesso a uma bibliodiversidade, a livros de qualidade iguais aos que estão disponíveis nas livrarias”.

Para a publisher da Editora Quatro Cantos e porta-voz do grupo Livro Livre, Rosana Martinelli, o processo realizado pela Prefeitura de São Paulo era exemplar e escolhia livros de grande qualidade, e também por isso a interrupção é injustificável. O grupo é uma iniciativa independente que reúne pequenas e médias editoras e que foi responsável pela articulação, junto ao gabinete do vereador Toninho Vespoli (PSOL), da notificação oficial ao MP.

“A criança precisa dessa literatura chegando às mãos delas. Além disso, a gente fica lascado. Existem editoras que fecharam as portas por causa desta interrupção, porque é muito importante os valores relacionados a essas compras. Tem editora do próprio grupo do Livro Livre que acabou, que a publisher, a dona da editora minúscula, teve que aceitar um emprego em uma editora grande full time, deixar a iniciativa dela de lado”, relata Martinelli.

“A gente teve, no ano passado, o atraso das compras de editais do PNLD e a ausência de compra deste edital do Minha Biblioteca que já estava escolhido em 2023. Então, muitas editoras tiveram de demitir pessoal, fecharam ou estão em stand-by. Isso abala demais o panorama, é uma coisa terrível, principalmente para as pequenas”, complementa.

No final de março, o gabinete do vereador Toninho Vespoli protocolou um pedido de informações à Prefeitura, questionando por quais razões a compra dos livros destinados ao programa Minha Biblioteca no ano de 2024 não tinha sido efetivada e se não havia verba reservada. O PublishNews também indagou a Prefeitura sobre o assunto.

A Prefeitura respondeu que realizou em 2023 a maior compra de livros da história do Município, e que, no ano passado, a Secretaria Municipal de Educação investiu em aquisições de 400 mil materiais relacionados à educação antirracista, educação ambiental e periódicos. “As unidades educacionais possuem acervos literários para garantia da aprendizagem de todos os alunos”, diz outra parte da nota – veja abaixo na íntegra. A Prefeitura não respondeu se a retomada do Programa Minha Biblioteca está prevista, e também não atendeu a um pedido de entrevista com a nova secretária executiva pedagógica da Secretaria de Educação, Maria Sílvia Bacila.

“Precisamos lutar pela manutenção e efetivação do Programa, pois ele fortalece toda a cadeia”, diz ao PublishNews o vereador Toninho Vespoli. “São livros de qualidade produzidos por editores independentes e que chegam nas escolas públicas direto nas mãos dos estudantes. A Prefeitura tem recursos e não usa para fomentar a literatura. O edital já existiu, tem normativa sobre o assunto e editores e estudantes estão esperando há anos o que já devia ter sido feito. No final, é uma decisão política do Nunes (Ricardo, prefeito da cidade)”, afirma.

Para Lizandra Magon, que também é conselheira do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de São Paulo, é papel da Libre e das demais entidades do livro é pressionar o poder público a saber o que motiva a interrupção. “Falta de recursos? Mudança na política de acesso à leitura? Mudança de prioridades? Se há qualquer nova diretriz, precisamos saber o que embasa essas mudanças e ser chamados a discutir novas propostas. O que não pode acontecer é as crianças ficarem sem livros por arbitrariedades políticas”, diz.

Em nota, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) destaca a relevância do Programa Minha Biblioteca e reconhece o papel fundamental desse projeto no incentivo ao hábito de ler, na promoção da cidadania e na construção de espaços de convivência e troca de saberes. “Lamentamos a interrupção do programa em 2024. Reforçamos que a CBL mantém diálogo constante com a gestão municipal e, em breve, realizará reunião com a Secretaria Municipal da Educação para discutir a retomada e a ampliação desta iniciativa, indispensável para o desenvolvimento cultural da cidade”, diz o texto.

Na Lei

O Programa Minha Biblioteca existe informalmente desde 2007, e foi instituído pela Instrução Normativa nº 10, de 24 de abril de 2019, “com a finalidade de proceder à distribuição gratuita de obras literárias aos estudantes da Rede Municipal de Ensino”. De acordo com a Instrução, a seleção das obras será realizada “anualmente”, por meio de edital de chamamento público da Secretaria Municipal de Educação.

Via de regra, uma Instrução Normativa não tem força de Lei, mas esta leva em conta quatro legislações – uma federal e três municipais – que versam sobre o assunto do livro e leitura: o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL, Decreto federal nº 7.559/11), o Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (PMLLLB) do Município de São Paulo (Lei municipal nº 16.333/15), o Plano Municipal de Educação – PME de São Paulo (Lei municipal nº 16.271/15); e a Lei municipal nº 16.710/17, que dispõe sobre princípios e diretrizes para a elaboração e implementação das políticas públicas pela primeira infância no Município de São Paulo e sobre o Plano Municipal pela Primeira Infância.

O advogado e especialista em mercado editorial Gustavo Martins de Almeida analisa que a instrução normativa deveria apenas regulamentar ou esclarecer uma lei ou decreto. “No caso, ela foi além, criou um ‘novo’ programa, não disse fonte de recursos, nem nada. É inócua”.

A editora Rosana Martinelli, porém, discorda. “A instrução normativa serve para determinar como algumas leis vão ser cumpridas. Ela não tem força de lei, porém, ela sim dá respaldo para que a interrupção do programa seja questionada na Justiça, sim. A instrução normativa foi um ponto muito forte na discussão com o gabinete do vereador Toninho Vespoli para que a gente pudesse tomar uma ação judicial. Então, apesar de não ter força de lei, ela tem força jurídica”, afirma.

Leia a nota da Prefeitura na íntegra:

"A Secretaria Municipal de Educação (SME) informa que realizou em 2023 a maior compra de livros da história do Município, contemplando mais de 8 milhões de unidades para o Programa Minha Biblioteca e acervos literários das unidades educacionais. Desde 2021, o total de livros adquiridos foi de 21 milhões. Em 2019 e 2020, esse número foi de 4,4 milhões de exemplares. No ano passado, a Secretaria investiu em aquisições de materiais para a Educação Antirracista, Educação Ambiental e periódicos. Foram mais de 400 mil exemplares encaminhados às unidades. Além disso, para a Bienal do Livro, os alunos matriculados da rede municipal receberam um voucher de R$60 para aquisição de livros por livre escolha no evento.

As unidades educacionais possuem acervos literários para garantia da aprendizagem de todos os alunos. Para além do programa Minha Biblioteca, também realizam práticas pedagógicas como empréstimos, clubes de leitura e trocas de títulos entre estudantes e famílias."

[17/04/2025 10:50:00]