
A primeira leva de livros reeditados pela Todavia sai em junho de 2025, entre eles, O vampiro de Curitiba. Também está previsto para junho, ainda sem título, uma antologia de contos organizada por Felipe Hirsch e Caetano Galindo. Uma nova peça de teatro, Daqui Ninguém Sai, com direção de Nena Inoue e inspirada nos textos de Trevisan, estreia no Festival de Curitiba, em março. “O Dalton está participando, fez a seleção de alguns contos que ele acha que têm apelo dramatúrgico entre a parte mais recente da produção dele, que é bem diferente e que o público mais jovem não conhece”, explicou a agente em novembro ao Valor Econômico. Uma biografia também está sendo preparada.
"É com grande tristeza que recebo a notícia do falecimento de Dalton Trevisan", diz ao PublishNews a presidente do Grupo Editorial Record, Sonia Machado Jardim. "Dono de uma linguagem única, direta, nos brindou com inúmeros livros maravilhosos, retratando personagens densos mas inesquecíveis. Eu estava certa de que ele estaria por aqui no dia 14/06/25 para brindarmos o seu centenário. Lembro quando perguntei a ele como estava de saúde há uns dois anos, me respondeu com um de seus famosos bilhetinhos: 'Saudável, eu? Mas não me queixo. Na medida que permite a carcaça esbodegada dos noventa aninhos…'. Puro Dalton".
"Dalton Trevisan foi um dos maiores escritores de todos os tempos, e ao lado de amigos, familiares e leitores a Todavia lamenta profundamente sua morte", diz ao PN o editor André Conti. "Ele deixa uma obra viva, radical e pulsante, que a Todavia terá a partir de 2025 a grande honra de publicar".
Morte
A causa da morte ainda não foi revelada, e mesmo o modo como a notícia começou a circular, na noite de segunda-feira, é típico da lenda que se criou em torno do escritor – vencedor de dezenas de prêmios literários em língua portuguesa, do Camões ao Jabuti, autor de uma obra extensa, complexa, densa e particularmente única. Ninguém no mundo escrevia como Dalton Trevisan.
Segundo o portal Bem Paraná, informações sobre a morte do escritor foram divulgadas pelo serviço municipal funerário da Prefeitura de Curitiba, que depois apagou a publicação, alegando que somente a família poderia levar a informação a público. Logo depois, o portal flagrou um carro funerário em frente ao prédio onde ele vivia nos últimos anos, depois de se mudar da mítica casa na esquina das ruas Amintas de Barros e Ubaldino do Amaral, no centro de Curitiba, a poucas quadras da Reitoria da Universidade Federal do Paraná. A informação foi confirmada em seguida pela agente e pela editora.
Vida
Dalton era conhecido por não dar entrevistas, mesmo com o enorme reconhecimento de sua obra – textos curtos (às vezes de poucas linhas), que contribuíram para construir a imagem de uma cidade e de suas pessoas, mas que atravessavam fronteiras reais e imaginárias para retratar o drama humano em seus momentos mais vulneráveis. Seus personagens eram malandros, prostitutas, bandidos, viciados e traficantes, mas também pequenos comerciantes, barbeiros, garçons, trabalhadores de toda a sorte. Jovens em busca de amores.
“Vocês escutam por aí: Curitiba, a fria. Curitiba, boa moça. Curitiba, cidade-modelo. Curitiba, Cidade Sorriso. Curitiba, capital social. Curitiba, capital ecológica. Curitiba, cidade europeia. Curitiba, cidade de primeiro mundo”, escreveu o escritor e cronista Luís Henrique Pellanda num texto para o Suplemento Pernambuco em abril de 2014. “E o Dalton escreve: Curitiba, uma cadela engatada que espuma, uiva, morde, arrastando o macho. A espada veio sobre Curitiba e Curitiba foi, não é mais, Curitiba, teu próprio nome será um provérbio, uma maldição, uma vergonha eterna. A gente escolhe em quem acreditar.”
Dalton publicou mais de 40 livros em vida, além de ter produzido dezenas de plaquetes que distribuía e enviava a amigos e alguns admiradores, gente de pelo menos quatro gerações diferentes, escritores, jornalistas, professores, leitores, dentro e fora do Brasil. Ele proibia quem se aproximava de falar com a imprensa e de revelar seus segredos – quando algo semelhante se passava, amizades eram interrompidas pelo resto da vida e a ruptura se tornava celeuma. Muita gente batia na porta dessa sua casa – uma casa sobrevivente no centro de uma cidade que cresceu mais de 20 vezes durante a sua vida – em busca de uma aparição, que ele sabia evitar como ninguém. Uma comparação comum nesse sentido se faz com o americano J.D. Salinger, mas Dalton levou o conceito de isolamento do mundo literário público a um nível inédito.
Seu primeiro livro, Sonata ao luar, apareceu em 1945, e Sete anos de pastor (que ganhou elogios superlativos de Sergio Milliet) veio no ano seguinte. Ele renegou ambos, e só voltaria a publicar em livro em 1959, com Novelas nada exemplares. A partir daí, se seguiu uma produção profusa, ano a ano, coerente mas permanentemente inovadora. Seu livro mais recente de contos inéditos – embora outra de suas características fosse uma constante revisão de escritos passados, retrabalhados, recortados e ressignificados, às vezes totalmente reescritos – é O beijo na nuca, de 2014. Em 2023, a Record lançou uma Antologia pessoal em edição de capa dura, e em 2024 reeditou alguns de seus títulos célebres em nova identidade visual, além de edições novas e ilustradas de contos agora vendidos como infantojuvenis. Em novembro de 2024, veio o anúncio de que sua obra passa para a Todavia em 2025.
Sonata ao luar foi republicado em uma edição artesanal em 2023 pela editora curitibana Arte & Letra, que também lançou, em 2014, A mão na pena, coleção inédita de contos. "Sonata ao luar foi uma ideia que surgiu da vontade de trabalhar com o Dalton mais uma vez", explica o editor Thiago Tizzot. "Fizemos A mão na pena em 2014 e, claro, queria muito trabalhar com ele novamente. Era uma ideia meio maluca, eu sabia que ele nunca tinha reeditado o livro e não tinha a menor vontade de mexer com o Sonata. Mas achei que valia arriscar. Encontrei com a Fabiana (Faversani) e propus o projeto, ela achou que era maluco, mas que talvez o Dalton pudesse topar. Dito e feito, dias depois estávamos trabalhando no Sonata ao luar. E foi uma belezura, o Dalton acompanhou todo o processo, aprovando e opinando em cada etapa. Os 120 exemplares esgotaram em 5 dias".
Entre 1946 e 1948, ele editou e publicou em Curitiba a revista literária Joaquim, que teve colaborações de nomes como Carlos Drummond de Andrade e Antonio Candido, além de ser conhecida por divulgar trechos da obra de Franz Kafka pela primeira vez no Brasil. Com a iniciativa, ele incluía de alguma forma a capital paranaense no circuito literário brasileiro.
Em 2024, a Tinta-da-China Brasil publicou em parceria com o IEB-USP o livro Dalton Trevisan: uma literatura nada exemplar, organizado por Hélio de Seixas Guimarães e Fernando Paixão, com ensaios sobre a obra do autor, inexplicavelmente pouco estudada, ainda. “Os dez textos aqui reunidos mostram como as aparentes repetições e obsessões do autor correspondem a um estilo intenso e direto, capaz de registrar com originalidade certos modos de viver em Curitiba e no mundo. A vida brasileira. Deparamo-nos então com uma comunidade em que convivem vampiros e cafajestes, prostitutas e boas senhoras de família, Joões e Marias – todos compostos de ruínas, cacos e fragmentos. Literatura nada exemplar, portanto. Por trás da aparente simplicidade de Dalton, pulsa na verdade uma arte complexa e que esconde um sábio demiurgo no uso das palavras”, escrevem os professores.
Dalton Trevisan morreu cercado pelo mistério que cultivou, e deixa uma das obras mais potentes da história da literatura brasileira.
Repercussão
"É com imensa tristeza que recebemos a notícia da morte do curitibano Dalton Trevisan, um dos autores mais originais da Língua Portuguesa, com o qual o Grupo Editorial Record desfrutou de uma parceria privilegiada. Foram mais de 50 anos de uma relação construída na base da confiança e de bilhetinhos com os quais costumava se comunicar com seus editores, nas inúmeras atualizações de seus próprios contos. Ao longo destas décadas, a Record teve a oportunidade de publicar mais de 40 livros do escritor", diz o texto da editora no Instagram. "Caminhando pelas ruas escuras de Curitiba, em terrenos baldios, quartos de pensões ou sob a chuva fina e gelada, as histórias do Vampiro nunca vão parar de circular. O Grupo Editorial Record agradece pela oportunidade de ter feito parte desta história e se solidariza com amigos, leitores e familiares".
"Serei eternamente grata ao Dalton pelos conselhos literários e pelo carinho com que ele sempre me recebeu contudo, por absoluta reverência ao grande mestre de todos nós, que desejava uma partida discreta, sem alarde, nesse momento prefiro não comentar nada sobre ele", diz a escritora Luci Collin ao PublishNews. "Me parece mais necessário apenas perceber as reverberações de uma obra tão intensa e profunda, em mim e nesse dia tão curitibano de chuva plena".
"Foi-se o autor, ficou a obra", diz Luis Henrique Pellanda. "Foi-se o homem, ficou a cidade que ele inventou, uma cidade onde cabe o mundo inteiro. A Curitiba do Dalton é universal, assim como o Dalton foi o mais universal dos curitibanos".
"Dalton Trevisan era grande de um jeito a que nós nem estamos acostumados. Um gigante de tudo. Visão, estilo, coerência. Hoje Curitiba fica ainda menor", compartilha o escritor, tradutor e professor da UFPR, Caetano Galindo.
"Quase tudo o que aprendi sobre concisão foi lendo o Dalton", conta a tradutora, jornalista e pesquisadora Mariana Sanchez. "Mas ele foi também um mestre da discrição e da sobriedade. Uma vez, convidada para mediar uma conversa com Cesar Aira na Feira do Livro de Jaraguá do Sul, tive a ideia de presentear o autor argentino com um livro do Dalton, que era, segundo Aira, o maior escritor brasileiro vivo. Mas tinha que ser um livro autografado, claro. Embora eu morasse a alguns quarteirões do vampiro, recorri ao Chain, livreiro tradicional de Curitiba e um dos poucos interlocutores do autor à época. Dalton andava resfriado e há tempos não 'descia' até a livraria, me contou. Parece que a Folha também o andara assediando nos últimos dias pelo seu 90º aniversário, o que tirou nosso vamp de circulação. Sem sucesso, tentei outro atalho: um diretor de cinema que tinha uma casa lotérica no centro da cidade e mantinha contato telefônico frequente com Dalton. 'Poderia ligar pra ele e explicar meu plano?'. 'Nada disso. É parte do nosso trato esperar ele se comunicar'. Muitos dias depois, recebei um telefonema: 'Já estou com seu livro em mãos, veio da biblioteca dele. E com um marca-páginas bem bonito junto'. Era A faca no coração. Mas por essa facada eu não esperava: quando Aira abriu o exemplar, não havia autógrafo algum. Ou talvez aquela fosse a legítima assinatura de próprio punho do vampiro de Curitiba".
Nas redes sociais, amigos, escritores, jornalistas e admiradores também deixaram suas homenagens.
Marcelino Freire disse que a literatura brasileira está de luto. "Quando convidei em 2004 Dalton Trevisan para a antologia Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial) o desafio era enviar um conto de até 50 letras. A antologia sem ele estaria incompleta. Diziam que seria impossível ele topar. E ele topou. Daí por diante, sempre via Correios, trocamos algumas palavrinhas. Coisas mínimas, bem ao seu estilo. Guardo comigo com carinho. A exemplo deste livro enviado por ele (segunda imagem). A dedicatória, veja, está escrita em exatas 50 letras. Ficou sendo essa a nossa eterna brincadeira. Descanse em paz, mestre. E gratidão por sua grandeza", escreveu Marcelino.
"Para mim, o maior contista em língua portuguesa de todos os tempos", afirmou o escritor e diretor da da Biblioteca Pública do Paraná, Luiz Felipe Leprevost, em nota nas redes. "Sua casa de esquina no Alto da Glória tinha um grande jardim, com o gramado sempre bem aparado e uma fileira de árvores com as copas invertidas, isto é, copas quase ao rés do chão e galhos grossos e nus no alto. Isso diz muito sobre a personalidade do Dalton, que optou toda a vida pela reclusão — ele tem milhares de leitores e fãs. Amigos com os quais se relacionava, poucos. (...) Dalton não fez livros e contos fragmentariamente, fez um grande e único livro ao longo da vida toda, uma verdadeira 'Ilíada curitibana', com toda a extraordinária dimensão humana que existe nessa ligação de épocas e mundos".
"Que que dá pra dizer de verdade quando morre um cabra desses?", escreveu o escritor e jornalista Yuri Al'Hanati, do canal Livrada. "Todo mundo aqui de Curitiba que MEXE COM LITERATURA tem uma historieta ou outra com o Dalton Trevisan que guarda como se fosse o maior tesouro descoberto em Surabaya. Coisas absolutamente bestas do tipo 'vi ele passando na lotérica' ou 'sabia que o Dalton volta e meia vem nesse restaurante?' Todo mundo queria que ele estivesse mais perto. Incontáveis vezes vi tentativas de se fazer homenagens a pessoa e festivais literários dedicados a sua obra, e ele nunca gostou de absolutamente nada disso, o que era completamente estranho pra mim uns vários anos atrás, felizinho de vinho branco nas calçadas de Paraty. Mas passam os anos e você vê que ter o Dalton como modelo é sempre a melhor alternativa do que ser o doido do centro. Quando largar tudo e ir morar debaixo do viaduto parecia muito tentador, era sempre bom saber que tinha um velhinho num casarão podre da esquina pensando as maiores monstruosidades pra botar no papel. E que disso ele fez sua vida. Adiós, Dalton!"
A deputada federal Gleisi Hoffmann também prestou homenagem: "Nosso Vampiro de Curitiba morreu aos 99 anos. Dalton Trevisan foi um dos maiores do Paraná, fundamental na literatura brasileira. Aos familiares e amigos meu sincero e profundo sentimento", escreveu.
O jornalista e pesquisador Paulo Camargo compartilhou uma história breve no Twitter: "Quando eu era editor de Cultura da Gazeta, Dalton Trevisan colaborava com o Caderno G, publicando textos inéditos. Um dia foi levar um de seus minicontos e, ao anunciar-se, pregou uma peça na recepcionista. Ela me ligou: 'O sr. Machado de Assis está aqui'. Pedi para ele subir".
Acervo
Uma doação de parte do acervo do escritor ao Instituto Moreira Salles (IMS) foi formalizada em julho de 2024. A doação conclui um ato iniciado em outubro de 2020, quando o Instituto recebeu de Trevisan a extensa correspondência trocada com Otto Lara Resende (1922-1992). São 560 itens datados de 1956 a 1992, ano da morte de Otto. O conjunto compreende as cartas recebidas pelo autor curitibano e cópias das missivas que este enviou ao colega mineiro. O material está organizado e disponível para consulta no IMS.
A este primeiro núcleo se somará a correspondência de Dalton com outros 45 interlocutores, entre eles os escritores Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, o crítico e professor Antonio Candido, o filólogo Antônio Houaiss, além de acadêmicos de literatura, editores e tradutores de seus livros para outras línguas. A coleção que será recebida pelo IMS inclui ainda 60 cadernos, dos quais 37 são diários datilografados.
Há também pastas com recortes de jornais e revistas, com crônicas suas publicadas na imprensa em 1947 e resenhas e reportagens sobre seus livros, bem como material reunido por temas específicos: crimes, cinema, Star Trek (ele era fã da saga) e escândalos políticos, entre outros. Completam o arquivo fotografias, um pequeno conjunto de livros e dezenas de gravuras e ilustrações de Poty Lazarotto (1924-1998), ilustrador de seus livros. Entre eles, representações do escritor com títulos como Retrato do Dalton empurrando o carro, Retrato do Dalton sentado no teto da casa Ubaldino e Retrato do Dalton fazendo figa.
Lançamentos
A Autêntica Editora também anunciou que vai lançar uma coletânea com treze contos inéditos que dialogam com a obra de Dalton. O projeto está sendo cuidadosamente elaborado desde julho desse ano, e o título ainda está em definição. Os textos serão assinados por Adelaide Ivánova, Ana Elisa Ribeiro, Caetano Galindo, Carlos Marcelo Carvalho, Cristhiano Aguiar, João Anzanello Carrazcosa, Luci Collin, Luís Henrique Pellanda, Marcelino Freire, Mateus Baldi, Noemi Jaffe, Rogério Pereira e Verônica Stigger – em edição organizada pelo jornalista Rogério Faria Tavares.