O que esses autores têm em comum, além do fato de serem homens, é que todos são autores que não apenas escreveram em condições possíveis para sua época como também foram autorizados (alguns, não todos) a narrarem, cada um a seu modo, a vida que os atravessavam.
Por outro lado, a pessoa dessa geração que escreve é antes de tudo uma pessoa que se edita e publica a si mesmo, e os efeitos disso, também controversos, ainda vão dar pano pra manga até o próximo milênio.
Antes de virar livro, Magia do desejo suave, que publiquei recentemente pela editora Minimalismos, era uma newsletter no Substack chamada “Fumódromo”, que escrevi entre 2022 e 2023. Durante oito meses, enviei, semanalmente, histórias que retratavam um período muito específico: o pós-pandemia; momento que coincidiu com meu retorno à São Paulo depois de passar dois anos no interior.
A tensão das eleições presidenciais e a descoberta de uma cidade que até se parecia com aquela que deixei (exceto por ser diferente) davam o tom ao mesmo tempo esperançoso e melancólico dos textos. Mas a própria vida, enquanto essa newsletter estava sendo escrita, provocou solavancos que alteraram o rumo das histórias.
As festas que voltei a frequentar tocavam os mesmos hits, mas o público era outro: no fumódromo, eu me deparava com uma nova geração que havia acabado de completar a maioridade, ou estavam no início dos vinte. Meu grupo de amigos se reduziu tanto pela distância física quanto emocional, então no passo em que estava rodeado de pessoas novamente, me sentia sozinho.
Eu retomava uma liberdade da qual sentia falta: a de ser um flâneur, alguém que bate perna pela cidade para redescobri-la. Me vi encontrando rapazes diferentes toda semana, mas sem criar qualquer vínculo. No dia seguinte eram apenas estranhos que fingiam não me conhecer. Frequentei o Espaço Itaú de Cinema religiosamente antes de encerrar suas atividades na rua Augusta e escrevi não apenas sobre os filmes, mas sobre a experiência de dividir uma sala inteira com outros solitários. O surgimento da rede de conveniência mexicana Oxxo, que hoje está por toda cidade, aparece no texto que mais tarde intitulou meu livro.
Liberdade e desejo começaram a ter um outro sentido e um outro gosto, mais agridoce. Finalmente tinha condições de bancar minha própria boemia, mas isso tinha um preço maior que o dinheiro. Somado a isso, eu vivia um luto que não se curava: uma necessidade de escapismo, uma melancolia que se agravou com situações que jamais imaginei experienciar, como a morte de uma das minhas melhores amigas da infância, retratada numa história chamada “Arcano 13”.
Inicialmente, meus assinantes eram em maioria amigos e familiares, mas com o tempo fui recebendo mais visitas e, por consequência, mais retornos sobre os textos. O curioso é que os comentários que recebi serviram como termômetro e incentivo para que eu trabalhasse mais em alguns temas, ou aprofundar uma cena. Como se meus assinantes fossem leitores beta de algo maior.
Era um déjà vu: eu sentia como se estivesse, novamente, escrevendo um blog pessoal em primeira pessoa, algo que fiz durante toda minha adolescência. Tem a ver com as ferramentas. O Substack entendeu o poder nostálgico dos blogs, e proporcionou a essa geração de escritores a chance de retomar projetos mais artesanais, onde fazemos um banner para as postagens, linkamos coisas, recomendamos outras páginas etc. Uma comunidade, enfim, como já foi o Blogspot, o Myspace e o Tumblr, só que por e-mail, outra modalidade vintage.
Os textos, que começaram mais ensaísticos e cronistas, foram se aventurando por outras vias. Algumas histórias pareciam contos ou trechos de um romance. Ou relatos. Ou diários. Meus personagens, incluindo o narrador, estão em busca de algo que se perdeu no meio de uma mudança entre cidades, ou no meio de um fumódromo, ou no trem voltando para casa.
Havia não uma voz sugestiva ou uma voz denunciadora dos temas da atualidade, mas uma voz que parecia continuar os mesmos temas por ângulos diferentes, e o principal entre eles era o desejo.
Não muito tempo depois de publicar o texto que intitula o livro, decidi encerrar a newsletter. E por mais que estivesse satisfeito com o desfecho do projeto, era inevitável pensar no que viria depois. Comecei a escrever algo mais longo, com maior fôlego. Um romance, talvez. Mas, curiosamente, as histórias perseguiam os mesmos temas, tinham o mesmo tom confessional daquilo que eu já havia feito. A falta de intimidade, a ausência dos homens com quem me relacionei, os vícios; os conteúdos eram os mesmos. E também a forma: eu escrevia, sobretudo, uma crônica desse tempo nebuloso onde uma coisa parece boa até se provar perversa.
Revisitei todos os textos do Fumódromo, incluindo histórias engavetadas, que não tinham entrado, e percebi uma conexão entre elas, o que também provocou uma necessidade: a de estruturá-las num projeto único. Algo que daria a chance de serem lidas em sequência.
Nathalia Levy, que conheci anos atrás, mais pela moda do que pela literatura, foi um reencontro que se deu em grande parte por causa da newsletter. Ela refletia em sua “Minha Existência na Internet” não apenas uma experiência pessoal como jornalista num período de fortes transições na área [por causa da internet], como também os efeitos da mesma sobre nossas decisões, personalidades e gostos.
Coincidentemente iniciamos e encerramos nossas newsletters praticamente na mesma época, e me lembro de uma conversa que tivemos no WhatsApp especificamente sobre o Substack, que àquela altura, já se aproximava da lógica das redes sociais, algo que gerava desconforto em continuar. Novamente, dependíamos de likes e comentários. De um algoritmo.
Mais tarde, eu a convidei para escrever o posfácio do livro, e o que ela entregou foi um lindo texto sobre a resistência dos gêneros literários “menores”, como a crônica, e como a internet, especialmente nessa forma de distribuição, tem mantido a chama acesa para eles.
“Foi uma grata surpresa perceber o quanto, quando bem editada, a escrita nascida na internet pode funcionar bem no papel e fazer as vezes de um respiro no meio do dia para uma época hiperconectada”, escreve Levy, e completa: “[O livro] é uma pausa que te diverte, mas te deixa com uma pulga atrás da orelha por conversar demais com você”.
Mesmo com os problemas já mencionados em relação ao fluxo e ao algoritmo, eu não deixaria de recomendar a criação de uma newsletter a um escritor, mas desde que tenha algum compromisso maior com sua própria liberdade, o que soa utópico e às vezes impraticável num mundo onde todos lutam por espaço para exercer seu pensamento.
Se todo autor é fruto do seu tempo, minha geração é a geração do “eu”, um eu em busca da própria voz. Mas há uma diferença entre “ter uma voz” e “ser uma voz”. A primeira parece estar em conformidade com uma necessidade de comprar discursos, ou seja, afinar o tom para fazer coro da maioria, o que resulta numa escrita mais reativa e menos permeável. Ser uma voz, por outro lado, é uma construção: você primeiro habita seus assuntos e ideias e só então as articula. Penso que é um caminho mais interessante para as newsletters e para a literatura. E se me perguntarem: “Quem é Lulu Mendes?”, eu diria: “Viciado em Coca-Zero, cigarros e luzes baixas. Mas até que é legalzinho”.
*Lulu (Lucas) Mendes (@luluumendes) nasceu em Campinas, e se mudou para São Paulo em 2016 para estudar jornalismo na universidade Fiam-Faam. Entre 2017 e 2020, contribuiu na frente de comunicação e conteúdo em publicações e marcas no segmento da moda. Em 2022 lançou a 'Fumódromo', uma newsletter em prosa que deu origem ao livro “Magia do Desejo Suave”, publicado pela editora Minimalismos.