Viva o Gordo!
PublishNews, Thales Guaracy*, 08/08/2022
O autor e editor Thales Guaracy relembra sua amizade com Jô Soares e destaca como maior qualidade dele o constante interesse pelo outro, principalmente as pessoas mais pitorescas

Jô Soares | © Divulgação TV Globo
Jô Soares | © Divulgação TV Globo
Certo dia, quando eu trabalhava na revista VIP, da Editora Abril, me liga Jô Soares, para falar de um amigo em comum: Píndaro Camarinha, então editor de arte da revista Veja, onde ele fazia uma coluna de humor, nos tempos em que a publicação ainda era o mais importante veículo impresso de circulação nacional.

Sabia que Píndaro, com quem eu também tinha trabalhado em Veja e depois em Exame, tinha virado sócio da Cantina do Sargento, nos Jardins, em São Paulo. Queria que eu fosse com ele fazer uma aparição para prestigiar Píndaro e promover o lugar.

- Vamos lá, mas tem de ser surpresa.

Ele me pegou em casa, a bordo de um Jaguar verde, um dos carros clássicos de sua coleção, e desembarcamos na Cantina. Sentamos à mesa, ele olhou o cardápio e pediu a “salada infernal”, de olho na dieta, enquanto os clientes ao redor, surpresos, saíam de mansinho das mesas e desapareciam porta afora, no caminho da rua.

No início, fiquei alarmado, mas Jô nunca perdia a confiança. Dali a pouco, voltavam todos, trazendo na mão exemplares do romance O Xangô de Baker Street, que ele acabara de lançar, para autógrafos. Ele atendeu todo mundo, veio Píndaro, e o que teria sido mais um almoço comercial nos Jardins foi virando um grande evento.

Conto essa história para dizer o que a meu ver era a maior característica de Jô, cujos amigos terão diversas histórias como esta para contar. Pessoalmente, ele continuava a ser, mesmo já célebre e rico, o artista sempre inseguro, precisando de reconhecimento, do amor alheio, numa carência infinita. Por outro lado, sua maior riqueza, e sua maior arte, era colocar o outro sempre em primeiro lugar. Gostava genuinamente do outro, prestava atenção no outro, se interessava pelo outro. Qualquer outro, incluindo, ou especialmente, as pessoas mais pitorescas. Algo que nunca deixou de fazer.

Creio que isso estava por trás de tudo o que Jô fazia, e era a razão pela qual fazia tudo tão bem. O interesse pelo outro é que o levava, como comediante, a criar personagens tão ricos e diferentes como o Capitão Gay e o alemão que confundia a pronúncia das palavras “palito, pálido e paletó”. Assim também era o Jô músico, cineasta, ator, escritor, jornalista. E até o memorialista – sua autobiografia, O Livro de Jô, na verdade é um desfile de histórias de outras pessoas que admirava ou de alguma forma fizeram a sua própria vida.

Em nossas conversas, como a última que tivemos, logo depois que deixou a TV, no restaurante Jardim di Napoli, onde não o deixavam pagar a conta, adorava ouvir e contar histórias de jornalistas, gente com a qual ele conviveu e meio no qual trabalhou desde sempre.

Foi também o interesse pelo outro que, por tanto tempo, e sem cansar, fez dele o maior entrevistador da TV brasileira. Jô não apenas trazia ao seu programa personalidades famosas, como gente que ele apresentava pela primeira vez.

Fosse quem fosse, esse momento sempre foi especial. Como fazia com Píndaro, Jô usava seu poder de “influenciador analógico”, como dizia, para divulgar escritores, músicos, cientistas e todo tipo de gente que merecia, aos seus olhos, respeito, interesse e curiosidade.

Num país que gosta de falar mal de si mesmo, e num meio cheio de maledicência e da crítica destrutiva como é o do jornalismo, seu programa era um oásis benfazejo para o Brasil e, de maneira geral, para o mundo das ideias, da cultura e da educação.

O ser humano é um supremo valor e Jô soube valorizá-lo. Num perfil que escrevi sobre ele para a revista VIP, em 1995, eu já falava desse personagem único: o curioso incessante, intrigado com as pessoas, com o diferente, sempre aberto a aprender. E fazia isso com talento e graça, de forma leve, inteligente e, sobretudo, amorosamente.

Jô se dizia um anarquista, um crítico de todos, única postura que achava ser adequada para fazer humor, mas era também uma pessoa construtiva, e que deu uma grande contribuição ao jornalismo e à arte no Brasil.

Sobretudo, nos deu seu exemplo de valorização e aceitação do outro, algo tão importante numa era de radicalismos, em que se fecha a porta ao diferente, e em que o olhar para o outro é frequentemente coberto de ódio. Jô, não. Democrata, vivia pela tolerância, aceitação e interesse pelo outro, algo que ele sabia exercitar com leveza, elegância e civilidade.

É essa lição de respeito e amor pelo outro que ele demonstrou ser possível praticar. Não apenas porque ele era o Jô, com seus talentos especiais, mas, como ele se esforçava em esclarecer, porque esse é o princípio geral da vida. E sua riqueza, pois a vida só tem sentido e valor na companhia de alguém.


* Thales Guaracy é jornalista, escritor e editor da Assírio & Alvim no Brasil. Entre seus livros publicados estão Asas sobre nós (Assírio & Alvim), A era da intolerância (Matrix), Anita (Record), A conquista do Brasil: 1500-1600 (Planeta), A conquista do Brasil: 1600-1700 (Planeta) e Xal: Órfã, drogada, moradora de rua, prostituída, presidiária. E milagre de superação (Panda Books, coautoria com Adriana Graças Pereira).


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews

Tags: Jô Soares
[08/08/2022 09:00:00]