A volta do editor-livreiro
PublishNews, Sergio Eduardo Sampaio Silva*, 12/09/2019
Em artigo, o sociólogo Sergio Silva analisa a história do mercado editorial brasileiro para discorrer sobre o jeito de ser livreiro no Brasil

Interior da Livraria Garnier da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro | Reprodução
Interior da Livraria Garnier da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro | Reprodução
Na gênese do mercado de livros no Brasil, os impressores-editores-livreiros nasceram juntos, mais ou menos como primos próximos. Naquele momento, quando a impressão deixa de ser proibida no início do século XIX, eles detinham a totalidade do processo de fabricação e venda de um livro, desde a escolha do original, as soluções técnicas e estéticas, até as decisões comerciais da época. Geralmente, estava tudo concentrado nas mãos de um único imigrante, são exemplos: Baptiste Louis Garnier, o irmão mais novo da tradicional família de livreiros e editores franceses, ou ainda os irmãos portugueses Francisco e Evaristo da Veiga. Apenas mais adiante, em meados do século XIX, vimos surgir pessoas como Paula Brito, um dos primeiros editores brasileiros, por sua vez, um negro de família recém alforriada, autodidata que rompe com as barreiras sociais de seu tempo e chega a ser um dos principais impressores dos documentos do império.

O processo de especialização técnica, principalmente o avanço da qualidade dos prelos, transformou os impressores mais dedicados em industriais. O caso da Cia Melhoramentos é exemplar, pois a empresa sustentou por muito tempo o slogan “do pinheiro ao livro”, mas, na prática, para além dos livros, ela se tornou uma das maiores indústrias do ramo de papéis para diversas finalidades. Em paralelo ao desenvolvimento tecnológico, a ascensão da grande mídia jornaleira e seu modelo de distribuição em bancas, movimento bem aproveitado por Monteiro Lobato, permitiu que a união das três figuras perdesse seu primeiro laço já no início do século XX. Ou seja, os impressores foram deixando para os editores-livreiros o contato com a rede de autores e comercialização dos livros. Foi assim que os impressores se assumiram verdadeiramente como uma “fábrica”, trazendo para seu cotidiano as dinâmicas da indústria e deixando de lado a dinâmica dos escritores e intelectuais.

Paula Brito, o primeiro editor brasileiro | Reprodução
Paula Brito, o primeiro editor brasileiro | Reprodução
O fato é que, entre meados do século XIX até a metade do XX, emergiu com vigor a figura do editor-livreiro, um tipo de comerciante que fornecia dentro de sua loja uma espécie de palco para os epicentros de difusão cultural. Vale lembrar que Machado de Assis foi um dos vendedores e participante da famosa Sociedade Petalógica na livraria de Paula Brito, mas que, ao mesmo tempo, teve boa parte de sua obra publicada pelo francês Garnier. O ponto é que ficou nas mãos do editor-livreiro a capacidade de unir e articular a rede de (autores-editores-livreiros-leitores), marcando a ordem da sequência produtiva que seguimos desde então. Inclusive, parece haver um consenso entre os profissionais do livro de que o maior ídolo do mercado foi o José Olympio, exatamente por ter constituído uma consagrada “casa” que foi um templo de cultura e sociabilidade do mundo das letras.

Ao longo do tempo aconteceu um processo que levou a uma passagem de um modelo de livraria que atendia ao propósito de vender, e, ao mesmo tempo, o desejo de ser um espaço de sociabilidade, para um novo modelo que descrevo a seguir. No início o mercado girava em torno e para uma pequena fração da elite, e é apenas na segunda metade do século XX que se dedica ao entretenimento de massa. Tal mudança reconfigurou novamente a morfologia do mercado, mudando também as posições de poder das figuras da cadeia. Por exemplo, um acervo de livros organizado à maneira de José Olympio, reconhecidamente um bibliófilo e comerciante à moda dos intelectuais dos anos 1920–30, é certamente diferente de um acervo organizado por Oswaldo Siciliano 40 anos mais tarde, um dos livreiros mais conectados com o crescimento do mercado para além das elites, o que viria ser o futuro das grandes livrarias.

Resumindo de maneira mais simples, podemos dizer que o impressor-editor esteve centrado na oficina até meados do século XIX, enquanto o livreiro-editor centrou-se na loja. A partir dos anos 1920-30, o editor “autônomo”, começa escolher o escritório para o exercício de suas funções deixando gradualmente a loja. Logo, se houve um tempo em que emergiu o “editor, simplesmente” e seu modo de edição, essa separação também condicionou um “livreiro, simplesmente” com seu modo de comercialização.[1]

A partir de um longo processo de especialização que foi separando as funções de imprimir, editar e vender entre os agentes da cadeia, o trabalho de edição se emancipou do comércio da livraria com o qual antes se confundia, pelo menos do ponto de vista simbólico. Na segunda metade do século XX, os editores foram se desligando da figura do “editor que tinha uma livraria”, ao passo que os livreiros, já relativamente autônomos dos editores foram expandindo-se em redes de lojas, e se profissionalizando sob uma lógica bastante diferente da configuração anterior. É nesse momento da história que começa uma “nova era”, a era dos livreiros de um lado e dos editores do outro. Ora, lembremos que a Livraria Saraiva, que foi uma editora-livreira até pouco tempo, vendeu o braço editorial para o grupo Somos Educação somente depois de mais de 100 anos de vida, e embora, na prática, a livraria e a editora já tivessem dinâmicas internas separadas, seu declínio é um exemplo icônico dos efeitos da separação do par editor.

Voltando atenção aos editores, caminhando com o processo mais geral de massificação dos produtos brasileiros na segunda metade do século XX, as livrarias foram condicionando as editoras a criarem distinções entre si. Um dos exemplos que levanto para reflexão é que as livrarias passaram classificar as editoras de acordo com o tempo que o livro dela demorava para vender. Deste modo, fortaleceu-se um tipo de comércio de giro rápido das mercadorias, e para que isso fosse possível, também foi necessário que uma parcela das editoras também estivesse interessada em produzir para tal modelo. Este processo reconfigurou todo o ecossistema, aumentando a venda em exemplares de livros únicos, mas tirando a força da bibliodiversidade, basicamente afastando os livros que demoravam mais para vender.

O fato é que, quando alguns editores declararam sua “independência” dos livreiros, e as grandes redes decidiram caminhar para a sua “profissionalização” ligando-se ao modelo de gerenciamento dos grandes grupos financeiros, fazendo a crítica sistemática do modelo anterior, chamando o passado de “pouco profissional” e passando a seguir os novos manuais de marketing e administração, quase sempre avessos ao tempo de produção necessário para criação de uma obra artística ou acadêmica, é perceptível que aconteceu não apenas uma cisão econômica ou empresarial dos negócios, mas também uma de caráter simbólico. Parece que o conjunto dos afetos, das afinidades, e o caráter quase mágico da representação de pequena livraria e editora, como foi a “casa” de José Olympio, também mudam no século XXI.

A história mostrou que a parte da cadeia que se ajustou mais rapidamente aos grandes conglomerados, foi aquela que se manteve dentro das lojas seguindo os novos padrões comerciais. Jean-Yves Mollier tem razão ao afirmar que “os gestores, os financistas, os analistas formados nas escolas de marketing substituíram os caçadores de talentos, os leitores vorazes de pequenas revistas” por uma nova figura hegemônica na rede, “como escreveu André Schiffrin: a edição escapa cada vez mais dos editores”[2]. O que os autores franceses nos mostram é que ao escapar dos editores ela ficou bastante dependente dos grandes livreiros. É claro que não foram todos, e falaremos mais das exceções a seguir, mas a maior parte das editoras acabaram “presas” na oferta ajustada ao entretenimento e ao giro rápido. Foi assim que assistimos o século XXI reger uma certa predominância dos grandes livreiros sobre os editores. Como exemplo, podemos citar que até os anos 1980, vários profissionais relatam que o desconto médio dos editores para os livreiros girava em torno de 30% sobre o preço de capa, e sabemos que atualmente apenas alguns nichos do mercado, como os didáticos, conseguem manter margem semelhante.

Já no século XXI, com a era digital e a continuação da fragmentação do processo produtivo, ou seja, com a separação processual das figuras ao longo dos séculos, o livreiro, agora um “grande comerciante”, está cada vez mais desligado dos autores e dos intelectuais, ou seja, mais interessado na circulação e na distribuição da mercadoria. Enquanto isso, o editor aparece solitariamente conectado entre autores e intelectuais, embebecidos de um modo de produção que se apresenta em muitos casos como livre expressão artística, mas esbarram num circuito de (re)produção organizado pelo capital financeiro, em outras palavras, são muitos autores e editores fazendo mais do mesmo para entrar nas regras das livrarias.

Não podemos esquecer que a vanguarda sempre existiu, foram e ainda são aqueles que se colocam contra o modelo hegemônico do momento, e se antes havia uma certa predominância dos grandes editores-livreiros sobre os pequenos, hoje, aconteceu uma mudança nas negociações comerciais que tem a ver com uma mudança no perfil do mecenato.

O investimento que alavancava os livreiros e editores do passado tinha um perfil parecido com o mecenato de outras obras de artes, por exemplo, o mercado da pintura e do teatro. Enquanto muitas livrarias do passado foram financiadas pela oligarquia tradicional brasileira, o jeito de fazer livros ainda tinha fortes ligações com o perfil da sociabilidade das diversas elites nacionais. Ao passo que as grandes redes passaram a receber financiamento de grupos financeiros transnacionais, o perfil do empreendimento também mudou assemelhando-se ao jeito de ser e fazer daqueles que colocavam o dinheiro.

Ora, até mesmo os livreiros e editores que hoje levantam a bandeira de independentes também necessitam de financiamento para começar, então o novo mecenato disposto a contrapor os conglomerados financeiros têm se posicionado no espaço de disputa, logrando para si o todo capital cultural acumulado na história dos editores-livreiros, de certa forma, chamando de volta a energia social que a rede produzia quando esteve mais integrada, ou seja, retomando como marca de distinção a sociabilidade e a bibliodiversidade negligenciada pelos grandes conglomerados. Um exemplo interessante é a nova Livraria Leonardo da Vinci, que tem retomado uma parte fundamental da sua história ao reconectar autores e editores independentes no seu entorno.

Ainda refletindo sobre a vanguarda, é nos anos 1990 que acontece outra mudança significativa na lógica do mercado, numa outra ponta do espaço livreiro foram surgindo as feiras universitárias que operavam sob novas premissas comerciais em pelo menos dois sentidos: primeiro ao reconectar os editores e os leitores, principalmente os editores que não tinham os best-sellers. Segundo, por vender os livros pela metade do preço da livraria, funcionando de modo parecido ao editor-livreiro do passado, transferindo a margem de lucro do intermediário em desconto direto para o cliente final, o leitor. Assim, se observarmos as feiras com atenção, percebemos um evidente desconforto de alguns polos dominantes, por exemplo, a pressão dos grandes editores em relação à Festa da USP, que ao longo de seus 20 anos escancarou ao leitor como funciona o atual jogo do mercado das letras, apontando suas distorções que colocaram algumas editoras dentro do ecossistema das grandes livrarias, lançando pequenas empresas para fora da história do livro.

Concordo com os estudos do sociólogo José Muniz, ao entender que atualmente os independentes se chamam assim por se colocar na lógica das contraposições, na qual um tipo de livreiro e editor vai se distinguindo do outro, marcando-se pelo emprego de métodos artesanais de produção, liberdade para experimentos estéticos, e de modo geral, acabam emergindo como portadores de um discurso contra-hegemônico.

Até mesmo a Bienal vem mostrando que com a crise das grandes redes estamos diante de uma espécie de volta do editor-livreiro, embora ela venha mudando de perfil ano a ano, e aparentemente se desligando da velha rede do livro por conta de seu alto custo para os pequenos e médios editores, a feira tem se resumido como um dia em que o editor vira livreiro, exatamente como no início do século XX, pois ele pode montar o estande a sua semelhança e não a semelhança da grande rede. É o dia em que todo o mercado, inclusive aqueles autores, editores e livreiros que não tem estandes, desfilam pelos corredores com o objetivo de se encontrar.

Resumidamente, é claro que falo aqui de modos hegemônicos em cada período, ou seja, sempre existiram os impressores, editores e livreiros separados, mas os tipos ideais, aqueles que lembramos duzentos anos depois, parecem ter migrado de um “jeito de fazer livro” integrado em uma pessoa, seja na prática ou simbolicamente, para três sub-comportamentos distintos: os impressores, mais próximos do jeito dos industriais; os editores do jeito dos intelectuais; e o livreiro do jeito dos administradores do mercado financeiro.

Seja lá em qual modelo comercial e de edição o futuro desemboque, já está claro que, com a crise das grandes livrarias, estamos assistindo à volta exponencial do editor-livreiro, do editor que volta a ter livraria, da livraria que volta a editar e reconectar a rede, do booktuber que ocupa o velho papel da indicação de livros, ainda que todo o esforço seja apenas online ou dependente de feiras, clubes de leitura e outros modelos que hão de surgir.

[1] Esta perspectiva é baseada nos estudos do francês Roger Chartier e do pesquisador brasileiro Aníbal Bragança, ambos propõem uma sistematização da história do livro “modos de edição”. Para eles é como se cada “modo de edição” fosse aos poucos exercendo uma certa hegemonia em seu tempo.

[2] Mollier, Jean-Yves. O dinheiro e as letras, um comercio delicado. Revista Escritos, ano 5, n.5. 2011. p29


* Sergio Eduardo Sampaio Silva é sociólogo da cultura e pesquisador da história social do livro e da leitura no Brasil. Bacharel pela Universidade de São Paulo e Mestre pela Universidade Federal de São Paulo. Atuante no mercado de livros desde 2007, com experiencias em vários setores do mercado, passando pela Livraria Cultura, Livraria Saraiva e Siciliano, Thomson Reuters e atualmente na Editora Zahar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PublishNews.

[12/09/2019 06:00:00]