A paixão contra o ódio
PublishNews, Luis Maffei*, 22/03/2016
Luis Maffei: 'Impeachment não pode ser resultado da desaprovação popular'

O momento incendiado que o Brasil vive enseja fala a muitas boas mentes. Conversando o Brasil com algumas delas, percebo que uma das faces da cisão que vimos testemunhando é a da paixão como defesa de uma causa versus a paixão como ódio. Como alguém que tem na paixão o modo de estar no mundo e agir nele, dentro da poesia, do magistério e da edição de livros, passo agora a opor simplesmente paixão a ódio, ainda que entenda ser o ódio uma paixão.

Em entrevista a’O Globo (21/03), que é um veículo eventualmente entreaberto mas apenas em páginas discretamente internas, Renato Janine Ribeiro pensa os protestos contra o governo. Segundo o filósofo, com lucidez em nada afetada pelo péssimo trato que recebeu de um governo ainda incapaz de concretizar a “Pátria Educadora” de seu slogan, as “reclamações políticas, no caso do Brasil, não são muito elaboradas. O país tem, desde pelo menos Gregório de Matos (1636-1696), no período colonial, o hábito de usar um único grande argumento contra o governo, a corrupção. (...) colocou-se todo o foco da corrupção no PT e nos seus governos, mas deixou-se de lado todo um conjunto de denúncias vultosas que vêm da oposição”.

Dada nossa mentalidade política pouco elaborada, os defensores do impeachment de Dilma destilam um desconforto odiante, incrementado pela incompetência econômica desse governo, pelo fato de há quase 15 anos o poder não estar nas mãos de uma minoria masculina e branca que venha de dentro da elite econômica. Os que vão às ruas gritar contra o governo talvez não saibam, senão muito genericamente, o que querem. Afinal, seu discurso, movido pela negação, é o de um “fora PT” a que não sucede, em seguida, qualquer conclusão: fora PT, certo, mas, dentro, o quê? Fora uma vaga intuição neoliberal, esse difuso eles (ou, como diz Adriano de Freixo em livro que a Oficina Raquel já lançará, a “nova direita”) pouco dirá, pois não se preocupa em manifestar qualquer contundente “sim”.

Contra isso, a paixão. A mídia hegemônica tem sugerido que há, de um lado, uma parcela independente da sociedade contra o governo, enquanto, do outro, o que eles resumem como militantes. Segundo Eliane Cantanhêde, em artigo no Estado de S. Paulo do último dia 19, havia, na passeata do dia 13, as “mais variadas pessoas e nenhuma bandeira de partido”, enquanto a do dia 18 demonstrava que “hoje, os vermelhos fecham-se em torno deles próprios”. Um uso inapto das palavras (em virtude de falta de intimidade com elas, logo com a linguagem, por escassez, quiçá, de leituras complexas) pode ter consequências. A jornalista mirou no galho e acertou na ave ao salientar que os verde e amarelos não tinham “bandeira de partido”, indicando, sem querer, que eles não tem é “bandeira”, coisa que sobra do outro lado, pois “os vermelhos” não estão fechados em si próprios: eles, e, entre eles, os que gostam ou não do governo Dilma, pensam um Brasil mais generoso — que se compare o tom das duas cenas: o primeiro, raivoso, baseado no “fora”; o segundo, tão desejoso de uma paixão serena que se intitulou, no Rio de Janeiro, “Canto pela democracia”.

Cantanhêde talvez nem saiba (ainda que saiba representar interesses), mas representa uma nova maneira de enxergar a política, que despreza os mecanismos de representação social e investe na manifestação direta do indivíduo — o que, no limite, toca a despolitização da política, numa mistura de autoajuda e direitos do consumidor. Quando políticos devem ser gestores, e não políticos, a coisa pública passa a ser tratada com o ethos que rege as coisas privadas. É por essas e outras que bandeiras de partido e centrais sindicais soam, a certos ouvidos, antiquadas. Entendo a necessidade de criarmos novas estratégias de representação coletiva. Porém, as históricas não podem ser escanteadas, muito menos substituídas pela não-política na forma da morte de um pensamento que tem a comunidade como condição sine qua non. Distante dos “coxinhas” ressentidos, há um projeto Brasil, ainda apaixonado, que rege os “vermelhos” — esta ser a cor do sangue e da paixão coletiva é mais um passarinho involuntariamente morto pelo néscio estilingue de Eliane Cantanhêde.

Impeachment, não percebem os que berram contra o governo, não pode ser resultado da desaprovação popular. Se assim for, e se este impeachment se confirmar, todos os governos seguintes, em se mostrando incompetentes como este, serão vulneráveis a impeachments. Não vivemos num regime parlamentarista, em que caem, ressalto, primeiros ministros (sem nenhuma facilidade), não presidentes da República. Além disso, não faz sentido legal punir a presidente por desvios a ela alheios. Mas, como o motor é um ódio pouquíssimo refinado, os histéricos realmente não percebem muitas transparências. E, se formos dizer-lhes essas coisas, alguns responderão, só e imediatamente, “Fora PT”.

Outra mente merecedora de atenção, Tales Ab’Saber é autor do livro Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica (Hedra).Em entrevista ao El país, Ab'Saber diz que o “escândalo estratégico e furioso que a oposição produziu nas ruas com a posse do Lula, envolvendo a ação desses juízes, tem como único objetivo desestabilizar e deslegitimar a ação política do ex-presidente”. Lula, para os cultores engomados do ódio, tem origens insuportáveis — a geográfica, a laboral, a social. Enquanto Lula causa pavor, Ab’Saber, pensando e não militando (ou militando seu pensamento), medita sobre a tentativa de deslegitimação do ex-presidente, encabeçada por gente como Sergio Moro. Para Cantanhêde, Moro é “símbolo (...) de justiça e de combate à corrupção”. Volto a uma mente mais cultivada ao ler Marco Aurélio Melo, ministro (não petista) do STF, dizer, em entrevista ao Brasil 247, que “Sérgio Moro não é o único juiz do país e deve atuar como todo juiz. Agora, houve essa divulgação por terceiros de sigilo telefônico. Isso é crime, está na lei. (...) Não se avança culturalmente, atropelando a ordem jurídica, principalmente a constitucional”. O símbolo de justiça, o herói branco e sulista, o antipestista por excelência, o que manda prender e manda soltar, é alguém que cometeu um crime. Contra Lula, não há provas; contra Moro, segundo Marco Aurélio Melo, há mais que uma evidência.

Escrevo este texto, escreve-o um militante. Meu amigo Kigenes Simas Ramos, excelente leitor de caracteres, reparou que uso o verbo militar em frases como “eu milito na Universidade Federal Fluminense”, e que isso indica o quanto ligo muitas atividades a causas, bandeiras, mesmo que elas sejam apartidárias — apolíticas, nunca. Apolítico, ou, no mínimo, subpolítico, é o ódio dos que odeiam atualmente. A paixão é o que me leva a editar livros, junto à minha companheira (desculpe, Eliane) Raquel Menezes, na Oficina Raquel. É como alguém que tem paixão por livros que escrevo este artigo, cujo fito é convidar à paixão inclusive os que terão dificuldade até em escutar o convite. Faço-o justo na semana da Paixão de Jesus Cristo, uma das mais apaixonantes personagens da humanidade. Não Lhe peço coisas. Se pedisse, pediria que apaixonasse os que só odeiam, ou que lhes desse uma militância, fosse qual fosse. Aí, sim, vermelhos em várias hipóteses de diferença, com verde, amarelo e tudo, seríamos capazes de, na própria diferença, conviver, entendendo que é melhor babar de paixão que de ódio, e entendendo também que é preciso pensar, com o máximo possível de inteligência e saber crítico, nas consequências históricas (sim, históricas) do que se esbraveja.


*coeditor da Oficina Raquel, professor de Literatura Portuguesa da UFF e escritor

[23/03/2016 11:00:00]