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Os tipos móveis de Gutenberg
PublishNews, Felipe Lindoso, 16/02/2016
Em sua coluna dessa semana, Felipe Lindoso questiona se o conceito de tipos móveis, como o elemento central da invenção da imprensa, ainda persiste

No grande universo dos livros, um dos campos pelo qual sempre fui fascinado é o da sua fabricação. Sou da época em que se compunha com linotipo, recebia-se as provas feitas com tira-prova e depois das correções o livro ia para as impressoras e depois para o acabamento. Atravessei a época dos fotolitos (ainda com composição a quente), pela composição com uma espécie de máquina de datilografia aperfeiçoada da IBM, que produzia textos justificados e já com uma boa variedade de tipos (as “bolinhas” eram trocadas). Esse material ia para uma mesa de paste-up e depois era fotolitado. Hoje todo mundo usa editoração eletrônica e o resultado é enviado por e-mail e já vai direto para a impressora, pelo sistema computer-to-plate.

Mas antes dos livros, ainda adolescente, trabalhei em jornal, em Manaus, que ainda usava composição a quente (linotipo, monotipo e clichês) e impressão em máquinas planas. Uma coisa! Uma vez vi uma página mal amarrada estourar e espalhar colunas de linotipo e blocos de clichês para todo lado, com risco de ferir um gráfico. Aliás, essa exigência técnica de produzir uma página completamente “amarrada” da tipografia perdeu-se na etapa seguinte do paste-up, e o que se viu de colunas tortas e fotos mal ajustadas... Só a editoração eletrônica recuperou a beleza de uma página bem montada.

Cada uma dessas etapas vividas só aumentava minha admiração pelo sujeito que inventou o básico: a impressão com tipos móveis. Sim, o famoso Johann Gutenberg.

Nunca fui a Mainz, sua cidade e sede de um museu e de um centro de estudos sobre tipografia, embora a cidade esteja bem perto de Frankfurt, tantas vezes visitada nas feiras. Mas sempre vou ao estande do Museu na feira, brinco de impressor e há muito tenho minha cópia tipográfica de uma página da famosa Bíblia de 42 linhas.

B42, Bíblia criada por Gutenberg | © Gutenberg Museum
B42, Bíblia criada por Gutenberg | © Gutenberg Museum

Recentemente li uma das poucas biografias sérias de Gutenberg existentes em tradução. Os trabalhos sobre a descoberta e vida dele são quase todos em alemão. É Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr. Achar o livro foi difícil. Encomendei através da Amazon mas o livro nunca chegou. Achei em um sebo por aqui e consegui comprar e ler.

É certamente um livro fascinante, com uma sólida abordagem do contexto da vida do inventor. Mainz estava feudalmente submetida a um Bispo Eleitor do Sacro Império Alemão, personagem político de primeira grandeza. Mas a cidade vivia às turras com os bispos, principalmente no período de vida de Gutenberg, quando o crescimento da burguesia já era evidente e entrava em choque com aquelas instituições feudais.

Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução
Capa do livro Johann Gutenberg – The man and his invention, de Albert Kapr | © Reprodução

A família de Gutenberg (as explicações sobre os sobrenomes na época são deliciosas) fazia parte da nobreza, e em vários momentos, por conta das disputas, teve que se exilar para a cidade-sede do bispado, Eltville (onde também estão alguns dos principais vinhedos do Reno). Essa origem social perpassa muitos aspectos da vida de Gutenberg, inclusive a disputa com o sócio Fust, episódio muito importante no desenvolvimento da imprensa.

Não se conhece a data exata de seu nascimento (entre 1400 e 1403). Estudou em Efurt e sabe-se que se aperfeiçoou em ourivesaria e em técnicas de estampagem, que seriam fundamentais para o desenvolvimento da tipografia.

Alguns detalhes que ressaltei da biografia.

- A primeira versão dos tipos móveis de Gutenberg não foi feita em Mainz, e sim em Estrasburgo. O aperfeiçoamento final é que foi em Mainz, onde ele imprimiu a famosa Bíblia, conhecida como B-42 (o B se refere à forma do tipo, e o 42 se refere ao número de linhas em cada página).

- O processo de “invenção” da tipografia foi extremamente complicado. Gutenberg foi o primeiro – e aí está a raiz de tudo – a conceber um processo viável e simples de fundição de tipos. As tentativas anteriores de impressão incluíam tipos de madeira, cerâmica e a impressão em blocos de madeira, como xilogravuras, com os textos desenhados. O tipo móvel é a primeira e a mais fundamental das descobertas de Gutenberg. Ele inventou uma espécie de portador dos moldes que permitiu a fabricação rápida dos tipos de impressão a partir de uma patriz (escultura das letras em punções com instrumentos de ourives). Essas punções eram aplicadas em uma barra de cobre, criando as matrizes. Como o golpe deformava a matriz, era necessário retificá-las (outra habilidade de ourives) e daí se tinha uma matriz final. Essa, usando o tal fundidor de tipos, gerava os caracteres necessários para a impressão. Só para a impressão da B-42, Gutenberg fundiu cerca de dois milhões de tipos, de 290 formatos. Esse processo necessariamente tinha que ter muita precisão, para que os tipos pudessem se alinhar e se ajustar entre si. Para isso, também se fundiram ligaduras (combinações de letras, como o Æ), sinais de pontuação, etc.

- A impressora foi construída a partir de modelos de prensas de vinho, com adaptações importantes: uma bandeja deslizante para se colocar a composição. Essa bandeja tinha que deslizar de modo bem preciso, para que a mancha ficasse sempre no mesmo lugar, e depois para que impressões de cores não perdessem o registro. A impressão propriamente dita se dava quando uma prancha de madeira descia por uma alavanca manejada pelo impressor e “carimbava” o papel colocado (também ajustado) sobre a composição.

- Finalmente, Gutenberg teve que desenvolver uma tinta que não borrasse e permitisse a impressão com clareza. A tinta usada por Gutenberg era feita a partir da fuligem de candeeiros, verniz, albume e urina humana como prováveis aditivos. A qualidade da tinta de Gutenberg até hoje impressiona quem vê um exemplar da B-42.

- O primeiro impresso atribuído a Gutenberg, em Estrasburgo, é um trecho intitulado Fragmento do Weltgerich. Mas os primeiros livros, já impressos em Mainz (com tipos fabricados em Estrasburgo) foram os chamados Donatus. Eram simplesmente livros didáticos, um manual escolar de latim.

Gutenberg regressa a Mainz por volta de 1448, e estabelece a oficina na casa de sua família, a Gurtenberghof. Lá imprimiu várias tiragens do Donatus, mas o local e as condições eram insuficientes para desenvolver seu grande projeto, a impressão da Bíblia.

É aí que entra em cena Fust, comerciante (também livreiro, de manuscritos), e ligado às corporações da cidade. Fust investe pesadamente no empreendimento e também coloca lá Peter Schoeffer, seu filho adotivo. Schoeffer era escriba, e provavelmente também recebeu formação de ourives. Há quem diga que o desenho da letra da B-42 teve sua participação. Para compor e imprimir a B-42, novas instalações foram montadas na Humbrechthof, uma casa muito maior, alugada por Fust. Provavelmente todos os artesãos envolvidos na empreitada moravam ali, como geralmente acontecia nas oficinas dos mestres medievais.

A B-42 foi impressa entre 1452 e 1455, e o impacto da qualidade do trabalho, como sabemos, repercute até hoje.

As relações entre Gutenberg e Fust se deterioraram, por conta de dinheiro, é claro, e o assunto foi parar nos tribunais. Fust ganhou a causa e ficou com a imprensa e os tipos que estavam na Humbrechthof. Mas Gutenberg, segundo Kapr, continuou com a oficina na Gutenberghof, até que foi obrigado a se exilar de Mainz em mais um confronto entre as corporações e o bispo-eleitor. Gutenberg mudou-se para Eltville, continuou imprimindo (embora sem a qualidade da B-42) e recebeu honrarias do bispo.

Fust e Schoeffer também continuaram imprimindo e produziram alguns dos incunábulos mais preciosos da primeira idade da impressão, como uma edição dos Salmos e outra da Bíblia, em 1562. Já no século XVI, um dos filhos de Schoeffer tentou atribuir ao pai a invenção dos tipos móveis, movido evidentemente por interesses comerciais.

Todo o desenvolvimento da impressão deu-se no meio das tensões religiosas que já prenunciavam a reforma e a cisão do cristianismo, e não é à toa que, além dos Donatus, o que se imprimiu mais foram livros religiosos, inclusive missais, e indulgências que, vendidas, podiam não garantir a salvação eterna para os compradores, mas rendiam grandes recursos para os emitentes, bispos, mosteiros e o papa.

Uma curiosidade que está no livro de Kapr é que a primeira tradução da Bíblia para o vernáculo não foi a de Lutero, de 1522. Dois dos impressores de Colônia -- Bartholomäus von Unkel e Heinrich Quentell -- imprimiram versões nos dialetos baixo-alemão e saxão, entre os mais de 400 itens bibliográficos que produziram, entre 1479 e 1500. Evidentemente os eruditos sabem disso, mas eu achava que Lutero era o pioneiro. E me refiro aqui a traduções impressas, porque outros manuscritos traduzidos e “editados” da Bíblia já haviam sido feitos, como se pode ler aqui.

No final da leitura eu me perguntava se o conceito de tipos móveis, como o elemento central da invenção da imprensa, ainda persistia. Não se tratava da discussão de McLuhann sobre o fim da “Galáxia de Gutenberg”, uma bobagem que a continuada produção de livros (ou superprodução) já desmentiu. O que eu me perguntava era se a ideia dos tipos móveis permanecia vigente na era da editoração eletrônica.

Acho que sim.

A comunicação entre os homens, depois que deixou de ser puramente oral, passou por várias formas de escrita. Mas nenhuma com a complexidade e flexibilidade do alfabeto. Um pequeno conjunto de sinais combinados permite expressar... tudo. Depois da escrita, que permitiu esse registro, a composição com tipos móveis é que foi o motor da multiplicação da palavra. Desde a composição manual, até hoje, é a combinação de letras formando palavras, frases, livros, expressando o pensamento e as sensações da humanidade e a sua infinita reprodutibilidade.

Afinal, o que é a composição digital senão o uso de impulsos eletrônicos para emendar uma letra após a outra? O livro não deve “ser convertido em algum tipo de aparelho tecnológico ou outro”, como diz Kapr. O fundamental da comunicação e reprodutibilidade da palavra escrita é essa combinação, primeiro mecânica e hoje eletrônica, que permite a leitura de todas as expressões do pensamento humano por bilhões de pessoas.

É por isso é que Gutenberg permanece ainda hoje como uma figura viva: porque estabeleceu esse ideal para o futuro, quaisquer que sejam as metamorfoses que seus tipos de chumbo e antimônio tenham passado, ou venham a passar.

Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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