Pela primeira vez, o diretor-presidente da editora francesa Hachette Livre, Arnaud Nourry faz um balanço do conflito entre a sua empresa e a Amazon, dos EUA. Ele justifica sua posição rígida na defesa de atribuições do editor na definição do preço dos livros e reafirma sua posição contrária ao modelo de subscrição de e-books. Nourry acredita que o livro eletrônico não substituirá o livro em papel, mas as duas versões – impressa e digital - coexistirão. Ele aproveita para convocar uma mobilização contra os projetos da Comissão Europeia que, segundo ele, enfraquecem os direitos autorais. Veja abaixo a íntegra da entrevista que Arnaud Nourry concedeu à Livres Hebdo, cedida ao PublishNews com exclusividade para o português.
Durante um ano, por conta das negociações que vocês tiveram com a Amazon, não ouvimos falar de vocês. Essa disputa acirrada valeu a pena ?
Esse caso que eu mesmo tomei frente ocupou uma boa parte do meu tempo. Não fiz declarações na época para não agravar a situação. Mas sim, valeu muito a pena, como a cada vez que as coisas essenciais entram em jogo. E nesse caso precisávamos saber quem, do editor até o revendedor, deveria definir os preços de venda dos livros no formato eletrônico e levar em conta o fato de que muitas coisas decididas nos EUA são depois repetidas em outros lugares. Sinto muito que essa decisão tenha virado um conflito, mas estou muito contente que tenhamos saído bem dessa. Mas, se fosse para fazer de novo, eu faria. Todos na indústria de mídia que não souberam manter o controle da produção no meio eletrônico estão em dificuldade. Se os livros eletrônicos fossem vendidos a US$ 5, bastaria alguns anos para que tudo estivesse mudado, com um mercado sem livrarias e um público acostumado a pagar quase nada. A música se adaptou, mas com um preço: uma alta concentração em três grandes atores mundiais. A diversidade sofreu com isso. A inovação no universo do som não é nada comparado ao que era 30 anos atrás. Não temos o direito de deixar fazer isso com os livros, que é a base das criação artística, da educação, da cultura e da democracia.
O acordo com a Amazon prevê melhores condições comerciais quando vocês abaixam os preços. Vocês o fazem ?
Não, somente se quisermos. O princípio é de não praticar os mesmos preços todo o tempo. Então, nós baixamos, depois subimos, nós testamos... Mas essa animação do mercado de operações comerciais não se dá em função das relações entre um distribuidor ou outro.
Nos EUA, o conflito revelou demanda inesperada por regulação de preços. A contribuição da Hachette Livre, que utilizou sua experiência na França, explicaria o fato de vocês serem os primeiros na mira da Amazon?
Hachette Livre desempenhou um papel especial desde 2009-2010, quando passou a existir o “contrato de agente” (1). Mas se você me perguntar porque a Amazon abriu as negociações comerciais conosco primeiro, eu não tenho a resposta. Na verdade, eu ouço cada vez mais editores e donos de livrarias americanos elogirarem a Lei Lang (que regula direitos e obrigações relativos à propriedade intelectual). Daí a pensar que seja possível fazer uma lei semelhante lá, é outra coisa!
Quais as lições que o senhor tiraria dessa disputa quanto às relações que mantém com Amazon e outros grandes operadores virtuais no mundo ?
Antes de mais nada, que essas grandes empresas trazem todas algo ao mercado editorial. É preciso esquecer os momentos conflituosos, e se dar conta que nós atingimos, graças a elas, clientes diferentes. A Amazon desempenhou um papel importantíssimo nesse sentido, da mesma forma como a Apple ou o Google. Não dá para menosprezar os benefícios que eles trouxeram. Em segundo lugar, em termos de relação, mesmo se eles são infinitamente maiores em tamanho do que nossa empresa, nossa capacidade de criação, com os autores, nos dá uma força simbólica que nos permite jogar com eles. Eu achei inclusive formidável que nos EUA, no ano passado, os autores tenham se mobilizado para nos ajudar a sair do conflito. O problema é o mesmo na França quando temos uma negociação com um parceiro. Isso me deixa confiante e otimista sobre o futuro dessa profissão. Mas é preciso ter condições para que possamos controlar o nível dos preços. Senão, de nada adianta deter os direitos exclusivos das obras dos nossos autores.
Que impacto teve esse caso no balanço anual da Hachette Livre do ano passado?
Eu não posso dar informações muito precisas. Obviamente pesou no faturamento das vendas online da nossa filial dos EUA, mas a baixa de 26 milhões de euros da nossa receita do ano passado só pode ser atribuída a isso de maneira marginal. Essa baixa se deve sobretudo aos efeitos do notro sucesso do ano anterior com a série Cinquenta tons ou Asterix, e as compressões na área de edição de livros escolares na França. E, no fundo, apesar de tudo isso, nós tivemos um ano sólido.
Hachette Book Group assim mesmo teve de deixar o escritório da Park Avenue, em Nova York, e desenvolver um plano econômico.
Nossa mudança não está relacionada a isso. Nós mudamos porque o proprietário tinha propostas muito diferentes das nossas em relação ao aluguel. Quanto ao plano econômico que nós conduzimos na primavera de 2014, ele é da mesma natureza do que todas as grandes editoras americanas fizeram alguns anos antes. Nós pudemos nos diferenciar um pouco porque, no período entre 2009 e 2011, época mais difícil pro mercado editorial americano, nós tivemos a sorte de nos beneficiar do sucesso da saga Crepúsculo.
No dia 7 de abril, a editora francesa Hachette Livre se muda para Vanves, no sudoeste de Paris. Ainda que vocês tenham construído um prédio muito elegante, essa mudança não afeta o grupo Hachette já que vocês saem do centro para irem à periferia de Paris?
O grupo vai continuar fiel à tradicional diversidade uma vez que muitas das nossas filiais continuam no coração de Paris. Para as equipes atualmente situadas no chamado Quai de Grenelle [Cais de Grenelle, no 15º arrondissement de Paris], a mudança para Vanves não fará grandes modificações: o novo prédio é perto do metrô; do canal de TV France 3, do grupo Bayard e da editora La Martinière. Todos estão próximos do nosso novo prédio. E para a empresa dona do terreno onde será nossa sede é uma aventura incrível poder se lançar num projeto para, pelo menos, os próximos 50 anos. Na verdade, Grenelle sim é onde nós nunca nos sentimos “em casa”. Foi pra nós como “um longo parênteses” entre a sede histórica du boulevard Saint-Germain, que tem suas raízes no século XIX, e o novo prédio.
Como o senhor, que fez dois terços de faturamento no exterior, analisa a evolução dos mercados mundiais do livro?
É interessante constatar que os mercados de língua inglesa, que se transformaram profundamente, encontram-se hoje em crescimento. O mercado americano progride há dois anos e o mercado britânico há um ano. Isso quer dizer que a leitura continua sólida. Na França e na Espanha, seguimos a conjuntura econômica. Isso foi flagrante de 2011 a 2013, e em menores proporções em 2014. Na França, o mercado perdeu 10% em cinco anos, e perdeu também lojas como Virgin e Chapitre. Mas, em um país de leitores como a França, não vejo porque a atividade não se recuperar como nos EUA ou na Inglaterra.
O senhor prevê investimentos na França?
Nós temos uma presença e uma diversidade que não nos torna o investidor mais ativo, ainda que, se houvessem oportunidades, nós as examinaríamos. Nossa prioridade continua sendo o mercado internacional. Ano passado, nós fizemos cinco novas aquisições na Inglaterra e uma nos EUA ainda que nenhuma delas seja espetacular. Há menos oportunidades na Europa Continental mas, se houvesse mais, nós olharíamos lá também.
Diante da livraria virtual, o que pode ser feito para melhorar a distribuição física do livro na França?
Esse não é nosso papel. Nós participamos da Adelc (2). Começamos a apoiar o plano Filippetti para a livraria. Isso é prova do nosso compromisso com a rede de livrarias, que nos reconhece, acredito. Eu sou muito otimista em relação às livrarias independentes. Nos EUA, elas tiveram de se submeter ao desenvolvimento do livro eletrônico, que começou a recuar, mas elas saíram da crise mais sólidas. A venda online é funcional e prática, mas não é o suficiente para os leitores assíduos.
Hoje se tem distanciamento suficiente para fazer uma análise da etapa atual de desenvolvimento do livro eletrônico? Qual o seu balanço?
No universo anglo-saxão, me parece que eles atingiram um patamar, em torno de 25% do mercado, mas com importantes disparidades entre o ilustrado, onde ele é acessório, e a literatura do grande público, onde ele está a 40%, 50%. O livro O pintassilgo, de Donna Tartt, tem mercado 50% eletrônico, 50% venda nas lojas. Essa proporção de 25% (do mercado para os livros eletrônicos) não se modifica há 18 meses nos EUA e está chegando a isso na Inglaterra. Eu tiro cinco lições. Um: nós não partimos para uma reviravolta do livro eletrônico, mas para uma co-habitação entre os dois modelos. Dois: o livro eletrônico, infelizmente, não aumentou o mercado, ele não permitiu o acesso a outros públicos; é substituição. Três: é uma mudança da nossa profissão que nos obriga a acolher novas competências, a modificar nossa organização para a fabricação ou o marketing, mas que não muda em nada na nossa base, que é ter o talento de encontrar os textos, de prepará-los e de vendê-los. É o que justifica a assinatura de apoio de mil autores na capa do New York Times do ano passado. Quatro: o livro eletrônico não degrada a economia dos editores e, quando olhamos as contas de Simon & Schuster ou HarperCollins, se vê que eles não sofreram tanto assim. Cinco: o livro eletrônico permite, graças a um aumento da margem de lucro deles, de manter a remuneração dos autores, contrariamente ao que se passou na música no qual o sistema de assinatura baixou o valor repassado aos artistas. É essencial que os autores ganhem tão bem no eletrônico quanto no impresso.
Como se explica o fato de o livro eletrônico não encontrar o mesmo sucesso fora do mundo de língua inglesa?
Nos EUA e na Grã-Bretanha, os grandes operadores tiveram a opção de quebrar os preços, o eletrônico se impôs durante um tempo, tornando-se atraente. Isso não foi possível em nenhum país da Europa Continental, por questões de regulamentação (preço único) ou contratuais (contrato de agente). Finalmente, quando não há uma vantagem de preço interessante, o livro eletrônico fica menos atraente ao consumidor. Um livro em papel é facilmente transportável e não quebra. Na França, o livro eletrônico continuará a crescer, mas lentamente, e seu índice de penetração será sensivelmente inferior ao previsto no mundo de língua inglesa, pelo menos com a tecnologia constante que se tem, já que a pesquisa continua por todos os lados e é bem possível acontecer uma nova ruptura tecnológica.
Isso poderá alterar a estratégia de vocês?
Não. Na França, eu esperava que o livro eletrônico atingisse entre 12 e 15 % do mercado editorial. No ritmo em que estamos, vai demorar mais alguns anos, mas isso não nos incomoda. Temos atualmente um ecosistema que funciona. Aliás, é por isso que eu me posicionei contra os serviços de subscrição de e-books, mesmo se no caso da música elas continuem a ganhar terreno. No caso do livro, criar ofertas de assinatura com um preço mensal inferior ao do livro é um absurdo. Para o consumidor, não faz sentido. As pessoas que lêem dois ou três livros por mês representam uma ínfima minoria. E para descobri-los existem as livrarias. Sei que tenho um ar de dinossauro dizendo isso, mas eu assumo. Meus colegas da Penguin Random House dizem a mesma coisa.
O senhor acredita que a modificação nas regras europeias sobre o setor eletrônico seja um objetivo alcançável?
Eu não quero renunciar a isso. Os ministros de quatro países europeus se pronunciaram juntos no dia 19 de março. É preciso dar uma chance para o bom senso prevalecer.
A tentativa da Comissão Europeia de questionar os direitos autorais o inquietou?
E muito! Esta nova comissão colocou como prioritária a harmonização dos direitos autorais. Não se deixe enganar: aqui harmonização significa enfraquecimento. Senão, começaria por uma análise aprofundada das situações de diferentes países para fazer sair as vantages e as desvantages da situação atual e ver quais as modificações realmente necessárias. E não houve, nesse caso, nem um começo de discussão. Uma coisa é certa: os lobbys acontecem em Bruxelas há anos para pedir um enfraquecimento dos direitos autorais. Eles conseguiram até repassar o relatório sobre o assunto a única deputada que representa o partido pirata! É preciso então continuar a batalhar e isso nos tomará um certo tempo. Nos EUA, a medida do fair use, solicitada no relatório Reda, permitiu ao Google scanear nossos livros sem autorização! A Europa quer mesmo fazer o mesmo? As indústrias culturais europeias existem porque nós temos um direito autoral sólido. Não é uma abordagem tecnocrática que pagará: precisamos fazer barulho.
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(1) O contrato do agente permite ao editor organizar a comercialização dos seus títulos com o revendedor sob forma de uma licença de exploração pela qual ele conserva a decisão dos seus preços públicos.
(2) Associação para o desenvolvimento da livraria de criação (Adelc), por meio da qual editores e poder público apoiam os donos de livrarias, geralmente sob a forma de empréstimos sem juros e participação no capital.
©Livres Hebdo 2015
Tradução: Nara Anchises