Jogando amarelinha em Buenos Aires
PublishNews, Lucía Tennina e Tarcila Lucena, 19/05/2014
Curadoras da programação de São Paulo na Feira de Buenos Aires contam a experiência de levar autores da periferia da capital paulista à terra do tango

A história até onde todos conhecem é que São Paulo foi a cidade homenageada na 40ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires [encerrada no último dia 12]. Todos sabem também que a escolha da prefeitura foi dar protagonismo à produção cultural das margens da cidade. Conhecem também, por algumas notas de jornal, quais os autores que estiveram presentes. À programação geral, todos tiveram acesso: foram 24 filmes exibidos no Malba, 34 mesas de autores, sete shows e quatro lançamentos de livros. A feira, como os leitores do Publishnews bem sabem, foi um sucesso de público, e em nosso estande não foi diferente.

O que ninguém no Brasil viu ou ouviu, mas os argentinos leram nos jornais e presenciaram na cidade, foi a linda festa que os mais de cem artistas dos dezesseis coletivos de saraus da periferia fizeram. O mercado estabelecido do livro – esquecido de onde vem a literatura, preso à crença da hegemonia branca do papel que prende letras que um dia voaram livres – olhava atônito o que acontecia no estande de São Paulo. Enquanto isso, o público foi crescendo de maneira exponencial. A curiosidade por saber de que se tratava um sarau transformou-se em desejo de repetir a vivência, de conhecer o que amigos contavam e de presenciar o que o Clarín declarou ser uma “experiência imperdível”.

Tamanha celebração não podia ficar restrita aos 144 m² do estande e nossos poetas ocuparam a cidade. Foram mais dezesseis encontros em diferentes bairros e instituições de Buenos Aires. Na universidade mais prestigiada da argentina, e uma das mais importantes da América Latina, a Universidade de Buenos Aires (UBA), numa conversar com os alunos dos cursos de Letras, tiveram suas obras discutidas, não só do ponto de vista sociológico, mas também por um viés formal e estético, afinal, não esqueçamos, trata-se de literatura, e de qualidade. Visitaram também o presídio de Devoto, onde a UBA mantém um curso de oficina de literatura. Depois do encontro, os detentos passaram a abrir as aulas com os versos de Marco Pezão, um dos pais fundadores, junto com Sérgio Vaz e Binho, dos saraus na Zona Sul: “nóis é ponte e atravessa qualquer rio!”.

Além de irem à UBA e a mais duas universidades em outros bairros e de se apresentarem em dois festivais de poesia que aconteciam paralelamente à feira, era desejo dos coletivos visitar bairros afastados e carentes de Buenos Aires. Visitaram La Matanza, um dos bairros mais estigmatizados da cidade, foram ao espaço de Eloísa Cartonera em La Boca e visitaram uma escola pública. O encontro mais emblemático foi no Galpon Piedrabuenarte, em Villa Lugano. No meio do distrito fica um conjunto de prédios semelhante às nossas Cohabs. No galpão, antes dedicado a guardar a cenografia não mais utilizada do Teatro Colón, dois rapazes jovens, Luciano Garramuño e Pepi Garachico, criaram um centro cultural. Como os representantes dos saraus que os visitava, fazem parte de uma juventude que não tem mais o desejo de sair do bairro, mas de transformá-lo, são enraizados e trazem tatuado no corpo o lugar de onde vêm. “Aqui, sim, nos sentimos em casa”, declarou um de nossos poetas.

Como parte do reconhecimento que nossa literatura periférica ou, como preferem alguns, entre eles Ferréz, também presente na feira, marginal, a tradutora e pesquisadora da UBA Lucía Tennina, organizou a antologia Saraus: movimento, periferia, São Paulo. O lançamento da coletânea de textos de autores da periferia de São Paulo não aconteceu só no estande, mas em duas grandes festas no La Cazona de Flores, centro cultural frequentado por universitários, intelectuais e ativistas. As festas foram até o amanhecer, como costumam acontecer em São Paulo. Um dos responsáveis pelo lugar afirmou: “nunca tivemos a casa tão cheia, nem nunca ficamos aqui até tão tarde”.

A poesia, a prosa e a garra dessa gente que faz arte independente de qualquer obstáculo tomou Buenos Aires e os efeitos foram claros. Na apresentação de despedida, no sábado (10/05), um cortejo de quarenta artistas foi seguido por mais de cem pessoas pelos pátios do La Rural. No estande, cerca de duzentas sentaram-se no chão e lotaram os corredores para acompanhar as derradeiras palavras desses poetas. Ao final, crianças, jovens, velhos, todos dançavam, batiam palmas e pés e repetiam os gritos de guerra que encerram os saraus dos coletivos convidados como se fossem seus. Sentindo-se parte da celebração, cantavam: “tambor, tambor, vai levar que mora longe. Vai levando os poetas que falaram no sarau. Boa viagem!”. Linda viagem fizeram os artistas da periferia de São Paulo, linda viagem proporcionaram àqueles que, sem preconceitos, se deixaram levar pela música, pela récita, pelo texto, e ousaram relembrar onde nasce a literatura.

Lucía Tennina e Tarcila Lucena foram curadoras da programação paulistana na Feira de Buenos Aires

[19/05/2014 00:00:00]