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Um livro que inspirou o Levante do gueto de Varsóvia
PublishNews, 19/04/2013
Um livro que inspirou o Levante do gueto de Varsóvia

As páginas dramáticas de Os Quarenta Dias de Musa Dagh, romance histórico publicado em 1933 pelo escritor Franz Werfel – baseado em um episódio heroico no qual uma comunidade armênia resiste no Monte Musa Dagh ao exército turco e ao genocídio que vitimou um milhão de armênios em 1915 – inspiraram diretamente os combatentes judeus que no dia 19 de abril de 1943 – exatamente 70 anos atrás – desencadearam o levante do gueto de Varsóvia.

O levante de abril de 1943 foi a primeira revolta civil armada no interior da Europa ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. A luta armênia travada em Musa Dagh e difundida no mundo por meio do livro de Werfel se tornou, no interior do gueto da capital polonesa, o símbolo de um povo que toma o destino em suas mãos e se lança à resistência armada contra a opressão e o extermínio.

Traduzido do alemão para o inglês logo depois de publicado, Os Quarenta Dias de Musa Dagh logo se tornou um best-seller. Mas em 1934 foi proibido pelos nazistas porque Franz Werfel era judeu e devido à pressão do governo turco – que nega até hoje a ocorrência histórica do genocídio armênio.

A referência à leitura do livro de Werfel (1890-1945) está em uma entrada de junho de 1942 do diário do historiador Emmanuel Ringelblum (Crônica do Gueto de Varsóvia, Ed. Livraria Morais), que documentou o cotidiano no interior do gueto de Varsóvia e organizou um arquivo clandestino, o Oineg Shabes; uma biografia do historiador se encontra em Quem escreverá nossa história, de Samuel Kassow(Ed. Companhia das Letras).

“O que as pessoas estão lendo? Este é um assunto de interesse geral; após a guerra ele vai intrigar o mundo. O que, o mundo vai perguntar, as pessoas pensavam em Musa Dagh ou no Gueto de Varsóvia”, quando sabiam com certeza que a morte chegaria, escreveu Ringelblum: “Diga-se que apesar de termos sido sentenciados à morte e saber disso, não perdemos nossas características humanas, nossas cabeças estão ativas como estavam antes da guerra”.

O leitor sério, escreve Ringelblum sobre as leituras em 1942, está fascinado por escritos de guerra, sobre a Primeira Guerra Mundial, especialmente a derrota da Alemanha, buscando analogias entre 1918 e os anos da Segunda Guerra Mundial e indícios que possam indicar a queda da Alemanha. E sobre Napoleão, considerado invencível e depois derrotado. “Os leitores adoravam a narrativa da marcha a Moscou, com sua culminação trágica, que foi provar o início do fim de Napoleão”, escreveu Ringelblum, acrescentando: “Em uma palavra, impossibilitados de se vingar do inimigo na realidade, estamos buscando isso na fantasia, na literatura. Isso explica nossa preocupação com livros sobre guerras anteriores, aos quais recorremos à uma solução para o problema trágico da guerra presente”.

Ringelblum registrou todos os aspectos do cotidiano, incluindo a destruição das livrarias em uma cidade conhecida por esta atividade: “As livrarias judaicas não existem mais. As lojas foram fechadas, os livros removidos. Os remanescentes dos livros que foram salvos da Rua Swientojerska, onde os vendedores de livros judaicos estiveram ativos por gerações, agora são vendidos na rua. O mercado central de livros é agora na Rua Leszno, onde os melhores livros de autores modernos são vendidos em cestas cheias. Não há falta de mercadorias proibidas, os livros de Feuchtwanger, Zweig, Kautsky, Lenin, Marx, Werfel”.

O aniquilamento do judaísmo polonês, com três milhões de mortos, foi também a destruição de uma cultura e de centenas de bibliotecas e de escritores, como Bruno Schulz, de quem a Cosac Naify lançou há pouco Ficção Completa, composta por apenas dois livros.

Os combatentes em Varsóvia tinham a lúcida e trágica consciência de que não lutavam para vencer – em 1943 o domínio nazista era absoluto e a cidade de Varsóvia se revoltaria mais de um ano depois, em agosto de 1944 – mas para não serem mortos sem resistir e para não se entregarem aos nazistas, como escreveu o comandante Mordechai Anielewicz, 24 anos, militante sionista socialista, em uma de suas últimas cartas antes de tombar morto no QG da Rua Mila 18 (celebrizado no romance de mesmo nome de Leon Uris): “Ataquemos o inimigo a partir dos esconderijos, matêmo-lo. Desarmados, revoltêmo-nos contra os assassinos, é preciso cair como heróis e, morrendo, não morrer! Além de nossa honra nada temos a perder! Não vendam barato nossa vida! Vinguemo-nos pelas comunidades destruídas”.

Lutando com este espírito, os mil e quinhentos jovens combatentes civis, com cerca de cem rifles e carabinas e algumas poucas centenas de revólveres e granadas e quase sem apoio externo polonês, resistiram mais que a cidade de Paris, o exército francês e sua “intransponível” Linha Maginot. Os combatentes eram em sua maioria militantes de esquerda, sionistas, comunistas e socialistas do Bund.

O comando nazista, com mais de dois mil soldados, tanques, artilharia e lança-chamas, achou que poria fim à revolta em poucos dias. Os combatentes resistiram quase um mês, depois o gueto foi completamente arrasado e os sobreviventes deportados para Auschwitz. Nas florestas da Europa Oriental cerca de 20 e 30 mil civis judeus também formaram unidades guerrilheiras. Milhares também integraram-se às unidades partisans soviéticas, além de participar em outros grupos próprios (na França havia uma Armée Juife) ou integrados em unidades nacionais em vários países.

Livros comoGueto de Varsóvia: crônica milenar de três semanas de luta, de Marcos Margulies (Ed. Documentário), O Levante do Gueto de Varsóvia, de Bernard Mark (Ed. Vitória), Memórias de um Partisan na Rússia, de Shmerke Kakzerginsky (Edições Biblos) e Os Irmãos Bielski, de Peter Duffy (Ed. Companhia das Letras, sobre a história de três irmãos comandantes guerrilheiros e o salvamento de milhares de pessoas em acampamentos móveis na floresta), são imperdíveis. Diário do gueto (Ed. Perspectiva), do educador Janusz Korczak, é um relato comovente sobre o cotidiano no gueto de Varsóvia.

Em um dos seus livros autobiográficos do período da guerra, A Trégua (Ed. Companhia das Letras), Primo Levi conta de uma criança, Hurbinek, de talvez três anos, nascida e assassinada em Auschwitz e de quem nenhum vestígio restara a não ser a própria referência a ela no livro de Levi. Em Se não Agora, quando? (Ed. Companhia das Letras) um livro de ficção (único que não é testemunhal no conjunto de livros do escritor italiano sobre o Holocausto), o guerrilheiro Dov exorta durante um combate: “Dispara tudo, agora. Sem economizar. Combatemos por três linhas nos livros de história”.

Escrever continuamente estas três linhas, e sempre cada vez mais três linhas, é o que nos cabe fazer para lembrar as vítimas que sucumbiram e também os heróis que desafiaram e enfrentaram o nazismo e outros regimes genocidas – escrevendo mais livros inspiradores como Os Quarenta Dias de Musa Dagh.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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