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O leiteiro, o tradutor, o violinista e o editor
PublishNews, 18/05/2012
O leiteiro, o violinista e o editor

O musical “Um violinista no telhado, atualmente em cartaz no Teatro Alfa, em São Paulo é uma adaptação de Tévye, o Leiteiro, do escritor Scholem Aleikhem (1859-1916), que acaba de ser editado em português pela Perspectiva, lançamento a ser festejado e só possível pela ousadia intelectual do editor, tradutor e professor Jacó Guinsburg.

Scholem Aleikhem, pseudônimo de Scholem Rabinovitch, é considerado um dos três autores clássicos – junto com Mêndele Mockher Sforim e I.L.Peretz – da literatura em ídiche, a língua dos judeus da Europa Oriental nos séculos 19 e 20 e também dos imigrantes aos Estados Unidos e países da América a partir do final do século 19.

Tévye, publicado originalmente em ídiche em capítulos de folhetim entre 1899 e 1905 em diferentes jornais e revistas de São Petesburgo, Varsóvia, Vilna e Nova York, teve sua primeira edição como livro em 1911, em Varsóvia, como parte das Obras completas do escritor. O musical “Um violinista no telhado” foi inicialmente adaptado pelo próprio escritor em 1915 e depois teve inúmeras versões a partir de Hollywood, como esta em cartaz na capital paulista.

O livro é composto de nove capítulos, monólogos em que o leiteiro Tévye se dirige a Deus, a ele mesmo, a seu cavalo e ao próprio escritor, narrando as angústias e as peripécias de homem crente que vê seu mundo ruir, seja porque as filhas têm casamentos longe do que ele desejaria, seja pelo processo de modernização que corrói sua pacata vida rural, convicções e fé em uma pequena aldeia de interior. Aleickem constrói uma narrativa ao mesmo tempo doce, dramática, trágica, irreverente e hilariante, compondo uma vasta galeria de personagens com suas falas, causos e histórias que rapidamente transitam do particular ao universal.

O prefácio de Berta Waldman mostra o complexo trabalho de tradução (e de transcriação) de J. Guinsburg que, entre muitas outras qualidades, reconstrói a “sonoridade do ídiche em português, introduzindo-se um grau de estranhamento na língua de chegada, não só no tom, na grafia, como também na opção em manter certos hebraísmos e eslavismos idichizados, que, através do aposto, vão sendo traduzidos ao português, evitando-se, assim, o incômodo recurso às notas de rodapé”.

A densidade social e cultural do ídiche era de tal ordem na Europa Oriental, onde milhões de pessoas a falavam, que praticamente todos os clássicos da literatura e das ciências humanas estavam traduzidos nesta língua. Durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto sua base social e demográfica foi aniquilada – seu principal polo se tornou, então, os Estados Unidos, especialmente Nova York, e ramificações para onde imigraram judeus, como Buenos Aires e, em muito menor escala, São Paulo. A literatura ídiche deu um prêmio Nobel a Issac Bashevis Singer, que conta suas memórias em Varsóvia em dois livros autobiográficos, Amor e exílio. Memórias (L&PM, 1985) e No tribunal do meu pai (Companhia das Letras, 2008). Nos EUA existe o Yiddish Book Center, que vale a pena conhecer por meio do site www.yiddishbookcenter.org.

Depois de Joias do conto ídiche, de 1948, pela Editora Rampa, J. Guinsburg fundaria a Perspectiva e lançaria outros volumes de clássicos nesta língua, incluindo uma coletânea do próprio Scholem Aleikhem, em 1966, que integra a Coleção Judaica, de 13 volumes, pioneira em editar no país uma coletânea extensa do pensamento e da cultura judaica em amplo espectro, com contos, poesia, textos de esquerda, religiosos, sionistas, filosóficos, literários, e que formou gerações de leitores neste campo. Guinsburg é também autor de Aventuras de uma Língua Errante (Perspectiva, 1996), uma história da literatura e do teatro ídiche.

O ídiche tem também uma expressão e uma literatura ídiche-brasileira-judaica; existem volumes já traduzidos de escritores imigrantes que escreveram aqui, como Imigrantes, mascates e doutores, de Meir Kucinski (Ateliê, 2002), a antologia O conto ídiche no Brasil (Humanitas, 2007), organizado por Hadasa Cytrynowicz e Genha Migdal, e Nossos lares, de Adolfo Kishinhevsky, primeiro autor de um livro ídiche impresso no Brasil, em 1932 (Cultura, 2008).

Graças ao movimento intelectual e literário que os imigrantes judeus criaram em São Paulo e outras capitais a partir dos anos 1910, o ídiche – além de língua do dia a dia dos imigrantes – ganhou relativa expressão, quase sempre em conexão com movimentos de esquerda de vários matizes, de sionistas a comunistas. Havia inúmeras bibliotecas em São Paulo, Santos, Rio de Janeiro e outras capitais.

No Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, em São Paulo, um grupo de voluntários organiza uma biblioteca nessa língua sob a condução do diretor de Cultura Ídiche, Abrahão Gitelman, tendo já catalogado, entre milhares de livros, cerca de 70 obras que formam uma verdadeira biblioteca “Brasiliana em Ídiche” – título de um artigo do próprio Gitelman no boletim da instituição. Além deste, Literatura ídiche no Brasil, de Nachman Falbel (Humanitas, 2009) é um catálogo com verbetes e capas dos principais livros relacionados ao país. Este conjunto é uma preciosidade cultural e inclui, por exemplo, uma antologia de literatura ídiche no Brasil editada em Buenos Aires em 1973 por Samuel Rollansky (ainda sem tradução).

São livros que expressam, na ficção, na poesia, na crônica e em outros gêneros as aproximações e o encontro do mundo judaico ídiche da Europa Oriental com a cultura, a sociedade e a natureza brasileira. Manter uma atividade editorial e uma biblioteca em funcionamento são uma forma de salvaguardar um patrimônio imaterial precioso que integra também as bases da nossa cultura formada de influxos os mais variados. Da mesma forma que no caso do italiano macarrônico de Juó Bananere, também o ídiche ganhou palavras e expressões que incorporavam o português ou o “idichizavam”; exemplos célebres, entre muitos, são o “gravatnik”, vendedor ambulante de gravatas, ou o “clientelchik”, mascate (clientela + chik, que tem a função de dar a sonoridade ídiche).

É muito difícil imaginar a sobrevivência do ídiche para além das bibliotecas e dos estudos sem uma base social ativa de falantes. Para J. Guinsburg, Tévye é um clássico da literatura universal, com seu realismo crítico, sua ironia militante que, ao mesmo tempo, contém certa indulgência e compaixão para com os disparates da comédia humana, gerando um efeito que segue a receita de Scholem Aleickhem: “Rir faz bem. Os médicos mandam rir!”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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