Refeições literárias
PublishNews, 09/03/2012
Refeições literárias

Escritores de ficção literária adoram colocar um pé na cozinha – é difícil encontrar um romance que não mostre algum de seus personagens em contato com comidas ou bebidas, nem que seja para apenas mencionar, aqui e ali, uma “salada e suco de laranja”, um “bife à milanesa” ou “tomates recheados”, três exemplos que acabei de ver tirando ao acaso alguns livros da estante. Por isso mesmo, um nicho bastante explorado no mercado estrangeiro é o de volumes que reúnem receitas citadas em obras famosas (e outras nem tanto, pelo menos para o público brasileiro). Meu preferido, de longe, é The Nero Wolfe cookbook (Cumberland House, 228 pp., esgotado), que não só descreve direitinho as maravilhosas criações de Fritz, o chef suíço que trabalha para o detetive inventado por Rex Stout, como traz dezenas de fotos de Nova York na década de 1930, época em que o escritor situou diversas aventuras de Wolfe e de seu impagável assistente, Archie Goodwin.

A obra de Rex Stout parece que foi feita para virar livro de receitas, já que elas aparecem em grande número em qualquer uma das mais de trinta histórias da dupla Wolfe-Goodwin. Outro trabalho bacana é compilar uma lista de iguarias citadas por determinados autores em vários de seus livros, tema de volumes como Literary feasts – Recipes from the classics of literature (iUniverse, Inc, 168 pp., US$ 15,95), de Barbara Scrafford, e The book lover’s cookbook (Ballantine Books, 368 pp., US$ 18), de Shalinda Kennedy Wenger e Janet Kay Jensen. O escritor e ilustrador Mark Crick foi além: em Kafka’s soup (Harcourt, 96 pp., US$ 14,95), ele imitou o estilo de autores famosos para descrever, à maneira de cada um, pratos como o tiramisù à la Marcel Proust, o risoto de cogumelos à la John Steinbeck e o frango vietnamita à la Graham Greene. E Sean Brand, no divertido Literary feasts – Inspired eating from classic fiction (Atria, 128 pp., US$ 18), deixou as receitas de lado, mas imaginou a atmosfera que estaria presente num café da manhã à moda de Joyce (“você precisa de uma esposa triste deitada na cama e de um gato com o olhar igualmente melancólico”) e de um chá da tarde inspirado em Alice no país das maravilhas (“uma chaleira gigantesca e um chapeleiro de sanidade duvidosa”), entre outros.

Ou seja: dá para programar uma refeição inteira com as entradas, pratos principais e sobremesas de Anna Karenina, O amor nos tempos do cólera, O grande Gatsby, Harry Potter e a câmara secreta. E onde estão os quitutes presentes na literatura brasileira? Temos uns poucos títulos que combinam cozinha e literatura, geralmente em caprichadas – e caras – edições. Em A comida baiana de Jorge Amado (Record, 328 pp., esgotado), Paloma Jorge Amado fez exatamente o que os estrangeiros fazem, selecionando os pratos citados nos livros de seu pai e dando as receitas correspondentes. Da mesma autora, e sobre o mesmo escritor, há um outro livro que ainda está disponível: As frutas de Jorge Amado (Companhia das Letras, 206 pp., R$ 101).

O mais comum, porém, é encontrar títulos que mais prestam homenagem do que esmiuçam a obra de um escritor em busca de referências gastronômicas. Cora Coralina – Doceira e poeta (Global, 144 pp., R$ 129) transcreve as instruções deixadas pela autora em seu caderno pessoal. Outro registro particular recheia as páginas de À mesa com Monteiro Lobato (Senac São Paulo, 112 pp., R$ 54,90), de Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta: o de dona Purezinha, casada com o escritor. Machado de Assis – Relíquias culinárias (Unesp, 156 pp., R$ 80), de Rosa Belluzzo, investiga os quitutes servidos nos bares e restaurantes da época em que o bruxo do Cosme Velho perambulava pelo Rio de Janeiro. E o belíssimo A poesia é para comer (Babel, 264 pp., R$ 160), organizado pela jornalista e escritora portuguesa Ana Vidal, combina versos e receitas de chefs e autores brasileiros, portugueses e africanos.

Mas o que dizer do pão de centeio com leite bem tostado servido na pensão de Clarissa (Companhia das Letras, 184 pp., R$ 37,50), dos bolos e pastéis com que Rodrigo Cambará é recebido de volta em Santa Fé em O retrato – volume I (Companhia das Letras, 360 pp., R$ 49,50), do arroz com guisado de carne servido na casa de Eugênio em Olhai os lírios do campo (Companhia das Letras, 288 pp., R$ 42)? A obra de Erico Verissimo merece uma pesquisa que revele os pratos devorados por seus personagens. Assim como ele, vários outros escritores brasileiros poderiam ganhar seus próprios livros de cozinha ou entrar em compilações sobre a literatura “gastronômica” nacional. Será que Nelson Rodrigues nunca citou um bolinho, uma sopinha que fosse? Fernando Sabino, Ariano Suassuna, Lygia Fagundes Telles, nenhum deles colocou o tal pé na cozinha? Quem procurar, encontra. Até Tony Bellotto, na trilogia protagonizada pelo detetive Bellini, menciona um sem fim de iguarias de uma certa baixa gastronomia paulistana. Que o digam o filé aperitivo, a pizza de alho e uma especialidade do boteco Luar de Agosto: sanduíche de salame e queijo provolone com maionese.

[08/03/2012 21:00:00]