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Dorina Nowill, uma vida pelos livros
PublishNews, 10/09/2010
No texto desta semana, Roney Cytrynowicz presta sua homenagem a Dorina Nowill

“Sei que senti naquela hora medo de não ser capaz de aprender o sistema braile. Era uma novidade, não sabia o que era nem me haviam dito como era. Um dia minha madrinha me levou ao Instituto Padre Chico e no parlatório a Irmã Alves nos recebeu. Ela era Superiora e chamou uma Irmã de Caridade, moça encantadora, Irmã Vicência. Nessa época, em plena guerra, 1939, não havia livros em braile a não ser os que tinham vindo da Europa. As cartilhas que os alunos usavam eram feitas à mão no próprio Instituto. Contaram-me que no Rio de Janeiro havia o Instituto Benjamin Constant que possuía uma biblioteca onde se poderia pedir emprestado livros em braile. Irmã Vicência me deu um papel e ensinou o alfabeto para que eu treinasse em casa com alguns exercícios. Eu lia mais ou menos, e para escrever, D. Elza Paula Souza, amiga de minha madrinha e membro da diretoria do Instituto Padre Chico, deu-me uma reglete [aparelho para escrever em braile], impossível de ser adquirida no Brasil naquele momento, por causa da guerra. Escreve-se da direita para a esquerda e lê-se na posição inversa”.

Foi assim que teve início o incansável e admirável trabalho de Dorina de Gouvêa Nowill (1919-2010) em prol do livro, da leitura e da inclusão profissional e social dos cegos na sociedade. Este trecho está em sua autobiografia ...E eu venci assim mesmo (Editora Totalidade, 1996), livro que certamente merece uma reedição melhorada e atualizada, talvez incluindo depoimentos de companheiros e contemporâneos de Dorina nesta admirável trajetória da sua vida e das instituições e causas pelas quais trabalhou.

Nascida em 1919, Dorina ficou inesperadamente cega aos 17 anos, conseqüência de uma doença que lhe tirou a visão em poucos meses. Sua força de vontade e perseverança impressionam na leitura de sua autobiografia, especialmente porque nos anos 1930 e 1940 eram mínimas as instituições e os recursos que existiam neste campo no País (o que vale para as deficiências em geral; basta lembrar, apenas como um exemplo, que as Apaes são da década de 1950).

Pouco após perder a visão, Dorina decidiu estudar piano, um pequeno episódio pessoal que ilustra o que foi sua trajetória: “Decorei o código de musicografia braile e recomecei a estudar piano, tendo Helena como professora. Helena ditava as músicas e eu transcrevia em braile. Primeiro a mão direita e depois a esquerda. Decorei dessa forma exercícios e músicas. Cheguei até a tocar algumas peças de Chopin, Lizt e Bach”. Uma nota curiosa é que ainda durante os anos da guerra, Dorina descobriu que a revista Seleções Reader’s Digest mantinha uma edição em braile que, subsidiada, custava um dólar por edição ou mesmo chegava gratuitamente a quem não pudesse pagar. Ela se tornou leitora da revista e passou a aprender o braile em curso por correspondência da norte-americana Hadley Correspondence School for Blind.

Dorina entrou em 1943 no Curso Normal da Escola Caetano de Campos, que estava abrindo uma biblioteca braile e era, na época, um centro de novas idéias educacionais. Foi na escola da Praça da República, em São Paulo, com o apoio de colegas e amigos, que ela começou efetivamente a vislumbrar e a desenvolver um projeto de educação de cegos e o primeiro passo foi um trabalho em grupo no curso de Metodologia de Ensino, embrião de um pioneiro curso de ensino de cegos na Escola Normal. “Não havia bibliografia referente ao tema. Havíamos feito um estágio de observação no Instituto Padre Chico e outros no Instituto de Cegos da Moóca. Visitamos também o Instituto da Rua Carandiru”, conta ela.

Um dos estágios se desdobrou na criação de um setor com livros em braile na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, dirigida por Lenira Fracarolli, que passou a ser freqüentada pelos alunos do Instituto Padre Chico. Foi o primeiro serviço para cegos em uma biblioteca pública do País e depois se transformaria na Divisão de Biblioteca Seção Braile do Centro Cultural São Paulo.

Tudo isso aconteceu nos anos da guerra, nos quais Dorina e sua mãe trabalhavam voluntariamente em oficinas de costura da Cruz Vermelha Brasileira, costurando meias e roupas enviados aos pracinhas da FEB que lutavam na Itália e sofriam as agruras do inverno. Foi na mesma Cruz Vermelha que se formou, ainda ao final da guerra, um serviço voluntário de copistas que transcrevia livros para formar uma biblioteca em braile, com alunos do Caetano de Campos e voluntários da própria Cruz Vermelha que trabalhavam com algumas poucas regletes e máquinas de datilografia braile. Ao mesmo tempo a Companhia Paulista de Estradas de Ferro concordou em fabricar regletes. Desta experiência nasceu a Fundação para o Livro do Cego no Brasil.

Daí em diante a vida de Dorina foi inteiramente dedicada a afirmar-se profissionalmente (o que não foi nada simples diante de desconhecimentos e preconceitos), criar projetos, programas, leis e instituições nacionais e internacionais. Logo após a guerra, Dorina partiu para os Estados Unidos, onde estudou educação para cegos e processos da imprensa em braile e audiolivros em vários cursos e cidades, fez inúmeros contatos e conheceu seu futuro marido (com quem teve cinco filhos). Os relatos do namoro, entre passeios no parque, na montanha-russa e sessões de cinema, são muito delicados.

Nos Estados Unidos, em visita à Fundação Kellog, em Michigan, Dorina ouviu que os livros gravados estavam entrando em funcionamento e que talvez não fizesse sentido instalar uma imprensa braile no Brasil, já que um sistema substituiria o outro. “Realmente, o livro falado era um excelente equipamento, mas que dependia de eletricidade. Talvez ela [Janet Marris, diretora da Fundação Kellog] não soubesse que no interior dos estados brasileiros viviam muitas pessoas cegas em cidades ou vilas onde não havia luz elétrica em suas casas. Era preciso pensar na grande maioria de pessoas cegas e não apenas naquelas que moravam nas grandes cidades. Por outro lado, muitas pessoas, como eu mesma, tinham necessidade do livro em braile para estudar”, registra Dorina. A fundação Kellog doou os recursos para a imprensa braile da Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Depois viria o apoio da Fundação Calouste Gulbekian para a produção de livros em braile.

Em 1950 na Escola Normal Caetano de Campos seria criada a primeira classe braile e, depois, em 1953, foi aprovada a lei que instituía as classes braile no sistema regular de ensino. “Essa lei também foi um marco muito importante na educação de cegos no Brasil. É o reconhecimento dos legisladores brasileiros de que o educando cego tem o mesmo direito que os outros à educação, sempre que possível nas mesmas escolas, com os mesmos recursos educacionais. Foi uma grande vitória para a Fundação”, conta ela. Em 1960 foi instalada a Campanha Nacional de Cegos no Ministério da Educação e Cultura.

A autobiografia de Dorina Nowill, bem documentada e cheia de referências fatuais, datas e nomes, conta sua vida em família e o crescimento dos filhos, a trajetória internacional, as conferências e reuniões de trabalho, as homenagens, os cargos em organismos internacionais, os relatos de inúmeras viagens e as conquistas e discussões em torno da situação e da educação para os cegos no Brasil e no mundo. Lendo esse relato, percebemos da forma mais aguda e emocionante, como os livros, as bibliotecas e a leitura são efetivamente ferramentas únicas e insubstituíveis para a inclusão de todas as pessoas, com suas capacidades e suas deficiências, no mundo.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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