Uma das dimensões mais interessantes e atraentes no universo do livro impresso é a rede afetiva que pode envolvê-lo, a maneira como livros e afetos se entrelaçam. Nós damos e ganhamos livros de presente, escrevemos e recebemos dedicatórias de conhecidos, amigos e namorados, ficamos horas perdidos a escolher que livro dar a alguém. Ao presentear um livro também fazemos provocações e desfeitas (aquele livro cuja leitura vai mostrar, de verdade, quem ele/a é) ou remetemos pequenas brincadeiras e estripulias.
Associar pessoas a livros é um exercício que pode ser divertido, sério ou doloroso. Ao receber um livro de presente, pensamos na pessoa que o deu e suas razões nem sempre explícitas (por que será que ela escolheu este? Será que foi por causa deste personagem? Estou começando a ficar magoado...); ao dar de presente, imaginamos a pessoa lendo (o que ela estará achando? Será que gostou? Será que entendeu logo a associação que fiz entre ela e o personagem? Ichi... será que vai entender errado?).
Depois de ganhar um livro escolhemos um lugar onde colocá-lo. Junto a outros presentes da mesma pessoa? Perto dos livros ou próximo a outros objetos estimados? Ao lado da cama ou na mesinha da sala? Eu, por exemplo, tenho prateleiras em que os livros seguem uma indecifrável e não-catalogável organização afetiva: livros que amigos muito queridos presentearam, livros escritos por amigos e assim por diante, com várias classificações crescentemente subjetivas (e, portanto, sem nenhuma lógica exterior); também brinco de escolher qual livro ficará ao lado de qual, promovendo encontros inesperados... É claro que ao longo dos dias e dos anos estas classificações mudam e se reconfiguram, fazendo com os livros literalmente andem pela estante e pelas prateleiras; alguns até tropeçam, caem e não voltam...
Há livros que propiciam a formação de redes de relações, emprestando para alguém que empresta para alguém que o faz a um terceiro e o nome do primeiro dono e dos leitores sucessivos vão acompanhando a circulação do livro, que vai criando um laço afetivo entre os leitores. Livros também são perdidos e achados, suscitando novas companhias e, não raro, reflexões de por que exatamente esse livro nos encontrou em um determinado lugar. Quando vou a uma biblioteca e sento em uma mesa onde existem livros deixados pelo consulente anterior, não consigo começar o que tenho que fazer sem antes olhar os livros deixados para trás. Não é nenhuma idéia mística, apenas uma curiosidade impulsiva que às vezes se torna uma experiência inusitada, porque me leva a olhar livros e temas que em cuja direção eu jamais iria sozinho.
Livros também armazenam lembranças e memórias de pessoas queridas e já falecidas. Pode ser um livro de receitas culinárias de uma avó ou tia com anotações na margem; pode ser um manual de automóvel de um tio que passava os finais de semana com a cabeça dentro do capô admirando o motor e a mecânica. Muitas vezes nem os lemos, eles são objetos de memória. Há também os comentários, os trechos e as palavras sublinhadas em livros emprestados ou comprados em sebos, o que torna as páginas impressas um diário manuscrito, com a letra e as marcas pessoais do leitor. Muitas pessoas gostam particularmente de adquirir livros em sebos por causa destas outras vidas de um livro, “dialogando” com os donos e leitores anteriores, marcadores do tempo, da leitura e da subjetividade.
Vou contar duas breves experiências pessoais que envolvem livros e afetos. Guardo uma pequena coleção de livros do avô da minha esposa, que eu também chamava de “vô Ernesto” (com a devida concordância dele). A sua casa e a sua vida eram cheias de livros, especialmente quando o assunto era a história da cidade de São Paulo e a européia (principalmente da Espanha) Quando ele já estava com muita idade, nos chamou e presenteou com uma coleção, reunindo os livros de história de São Paulo. Eu os mantive juntos e eles se tornaram as prateleiras de memória do “vô Ernesto”, o testemunho de uma vida repleta de livros e afetos.
A outra história se deu quando eu tinha uns 18 anos e envolveu minha enciclopédia Como Funciona (sobre a qual comentei algumas colunas atrás) e o meu tio Leopoldo, que tinha uns 60 anos na época. Eu estava interessado em alguns livros dele e ele achava muito interessante a Como Funciona e, não me lembro exatamente como, chegamos ao seguinte acordo: faríamos uma troca em que eu escolheria alguns livros e ele ficaria com a enciclopédia. Mas ele incluiu uma cláusula adicional, que na época eu nem entendi e que hoje, penso, foi das propostas mais comoventes que já recebi, especialmente pela duração de tempo e intensidade da relação que pressupunham. “ – Se um dia você tiver um filho, quando ele fizer 13 anos você virá com ele à minha casa e a Como Funciona será um presente meu para ele, uma ‘devolução’, eu apenas vou cuidar dela por alguns anos”; “E destrocamos os livros, não, tio?”, “ – Não, o que é teu fica com você. A história da enciclopédia vai ser entre eu e ele. Mas me prometa que você não esquecerá o combinado e vai trazê-lo aqui”.
E é assim que a memória e a lembrança de duas pessoas queridas continuam próximas nas páginas impressas dos livros. Sobre a proposta do meu tio... é claro que nós dois cumprimos o trato, na data exata, muitos anos depois.
Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.
Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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