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“A velha impenetrabilidade do Brasil ao livro”
PublishNews, 13/08/2010
Em época de homenagem a Monteiro Lobato na Bienal do Livro, Roney escreve sobre um dos nossos principais escritores

“Olhe, ao vender minha fazenda do Buquira e ao mudar-me para S. Paulo, tive de procurar uma ocupação na qual empregasse a minha atividade e me desse dinheiro. Comprei a Revista o Brasil e um dia editei um livro, e depois outro, e quando abri os olhos estava ‘editor’, essa coisa que se chama editor e tanto impressiona os coitadinhos dos escritores novos. Associei-me ao Octalles [Octalles Marcondes Ferreira]. Mas vi logo um defeito gravíssimo no negócio. A mercadoria que produzíamos – ‘livro’ – era uma mercadoria sem bocas de escoamento. Não havia pelo país inteiro mais que umas 40 ou 50 livrarias. Ora, como pensar numa indústria assim, sem saída para os seus produtos? E a Grande Ideia veio: romper aquela barragem, rasgar seteiras na muralha, levar os livros até onde houvesse um grupo de fregueses potenciais.”

O estilo inconfundível é de Monteiro Lobato contando como se tornou editor e fundou sua primeira editora no início dos anos 1920. Esta história circula como uma verdadeira lenda no mundo do livro e tem várias versões do próprio Lobato, narrada em cartas e entrevistas; vale a pena conhecer esta lenda contada pelo próprio escritor. Sua franqueza, quase rude, advém do tratamento do livro como mercadoria e das ofensas que distribui, mas – como tudo o que tem a ver com Lobato – o humor e a ironia (e o empreendedorismo, neste caso) são insuperáveis. A fonte aqui foram as entrevistas “Faz vinte e cinco anos” e “Lobato, Editor Revolucionário”, entre outras, realizadas a Vamos Ler e a Leitura (em Prefácios e Entrevistas, Brasiliense, 1957).

Para rasgar seteiras na muralha, Lobato compilou endereços com os correios e através de outros meios e redigiu uma circular: “Essa circular marcou a virada de esquina da nossa cultura. Mandamo-la a uns 1300 negociantes cujos endereços com algum esforço obtivemos: 1300 negociantes de 1300 cidades e vilas do Brasil dotadas de serviço postal – donos de pequenas papelarias, donos de bazar, de farmácias, de lojas de armarinho ou de fazendas e até de padarias... A circular propunha-lhes um negócio novo: a venda duma coisa chamada ‘livro’, que eles receberiam em consignação e, pois, sem empatar dinheiro nenhum. Vendida que fosse a tal misteriosa livraria, o negociante descontava a sua comissão de 30% e nos enviava o saldo.”

A circular dizia mais ou menos o seguinte: “Vossa Senhoria tem o seu negócio montado e quanto mais coisas vender maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada ‘livro’? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se do que essa coisa é. É um artigo comercial como qualquer outro, batata, querosene ou bacalhau”. E, assim, os livros passaram a ser distribuídos em papelarias, farmácias, bazares, açougues e qualquer lugar que vendesse mercadorias.

O resultado foi excelente: “Nenhum dos nomes convidados pela circular recusou o bom negócio – e passamos de 40 ou 50 vendedores de livros a 1300...” Com isso, as edições que eram de 400 a 500 exemplares saltaram para milhares. Então o entrevistador pergunta: “ – Mas se era uma coisa simples assim, porque os velhos editores não o fizeram antes?”. A resposta: “ – Questão de mentalidade. Medo de perder dinheiro. A consignação é algo arriscado. Há uma porcentagem de perdas muito grande. Muito calote. Mas como o dilema era ou fazer aquilo, ainda que rebentássemos, ou perpetuar-nos sem indústria editora por falta de vendedores, nós nos arrojamos, num ‘vai ou racha’ que foi e rachou a velha impenetrabilidade do Brasil ao livro e deu surto ao que você vê hoje: centenas de casas editoras, grandes e pequenas – e todas vendendo a enorme massa de livros editados.”

Narizinho Arrebitado chegou a vender mais de 50 mil exemplares, incluindo a compra de 30 mil exemplares pelo governo Washington Luis para o uso nas escolas de todo o País.

Assim nasceu a Monteiro Lobato & Cia. A seguir, Lobato conta como inovou, por exemplo, nas capas: “Nós mudamos tudo. Arranjamos desenhistas para substituir as monótonas ‘capas tipográficas’ pelas capas desenhadas – moda que pegou e ainda perdura. Os balcões das livrarias encheram-se de livros com capas berrantes, vivamente coloridas, em contraste com a monotonia das eternas capas amarelas das brochuras francesas”.

E mudou radicalmente a forma de relacionamento com os autores: “Abri as portas aos novos. Era uma grande recomendação a chegada dum autor totalmente desconhecido – eu lhe examinava a obra com mais interesse. Nosso gosto era lançar nomes novos, exatamente o contrário dos velhos editores que só queriam saber de ‘consagrados’”. Quando chegava um medalhão: “ – Ah, não entravam. ‘Tenha paciência, amigo. Você já está graúdo, já tem nome. Arrume-se lá com o Garnier ou o Alves. Nós aqui somos para os que se iniciam’. Só exigíamos uma credencial: talento”.

Os resultados trazidos com as espantosas vendas de livros fizeram a editora crescer. Lobato montou uma bem equipada gráfica e então, em 1924, veio uma tremenda seca e a Light cortou em dois terços a energia elétrica da cidade (obrigando à redução do ritmo da gráfica), houve uma crise financeira e a gráfica, superdimensionada, foi à falência. Depois nasceu a Cia. Editora Nacional, já sem Lobato como sócio, mas ele continuou, evidentemente, seus empreendimentos e aventuras no mundo dos negócios e dos livros.

Vender livros até em padarias... ousou Lobato nos anos 1920. Quase um século depois ainda lidamos com a persistente e “velha impenetrabilidade do Brasil ao livro”.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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