Uma trajetória improvável, até mesmo para um inspirado ficcionista: menino pobre, em cuja casa havia apenas dois livros – nenhum deles pertencentes à família – recebe, muitos anos mais tarde, o prêmio Nobel de Literatura. O protagonista desta história é o escritor português José Saramago, tema de uma cuidadosa biografia escrita por João Marques Lopes.
José Saramago – Biografia (LeYa, 248 pp., R$ 39,90) que descreve em detalhes esses acontecimentos, assim como o contexto social e político em que se inserem. A narrativa cronológica vai desde a infância na aldeia de Azinhaga até o lançamento de Caim, seu último romance, em 2009. O autor acompanha o desenvolvimento dos projetos literários de Saramago, utilizando suas obras como fio condutor da narrativa. Analisa tanto as produções mais célebres, como Levantando do chão, que viria a inaugurar o chamado “estilo saramaguiano” – a narrativa fluida, próxima à oralidade, que desobedece as normas formais da linguagem – quanto outras menos cotadas como o primeiro romance Terra de pecados, publicado em 1947.
Nessa época o ex-serralheiro mecânico já havia se tornado escrevente, mas ainda iria demorar até que se transformasse em um escritor reconhecido e respeitado: sua consagração definitiva acontece aos 60 anos, quando publica o terceiro romance, Memorial do convento.
Embora focalize mais a obra que a vida pessoal de Saramago, Marques Lopes não deixa escapar detalhes tocantes dessa trajetória improvável, como a menção feita aos avós Jerônimo e Josefa, analfabetos, em seu discurso ao receber o Nobel, em 1998.
O autor também não se furta a analisar episódios polêmicos, como o veto à candidatura do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo ao Prêmio Literário Europeu, em 1992. O episódio ganhou ares de censura governamental e teve repercussão mundial. Emblemático, teria sido o gatilho para a mudança de Saramago para a ilha espanhola de Lanzarote, nas Canárias.
Opiniões controversas de Saramago também são abordadas, como suas críticas ao belicismo norte-americano e à ação de Israel frente aos palestinos.
Prestes a completar 88 anos, José Saramago desfruta hoje de reconhecimento e fama incomuns para escritores. Graças à penetração de sua obra, traduzida em diversas línguas, em 2008 chegou aos cinemas de todo o mundo a adaptação de seu livro Ensaio sobre a cegueira, uma grande produção dirigida pelo brasileiro Fernando Meireles.
Marques Lopes considera que Saramago alcançou o status de superstar e que utiliza da visibilidade conquistada para “destilar a voz da dissidência e do protesto diante do “estado do mundo”. Uma habilidade notável desse pensador inquieto que, aos 85 anos, experimentou escrever um blog.
Sobre o Autor
João Marques Lopes desenvolve, atualmente, trabalho de doutorado na área de Literatura Brasileira, pela Faculdade de Letras de Lisboa e em colaboração com a Universidade de Utrecht, na Holanda. Do autor já foram publicadas biografias sobre Almeida Garrett, Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Colaborou com vários artigos na coleção Os Anos de Salazar, sempre no âmbito da literatura e cultura portuguesas. É licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa.