“Quem guardou na lembrança apenas a imagem de Sérgio Ricardo quebrando seu violão, talvez ignore a biografia de um dos nomes mais marcantes da cultura brasileira. Cantor, compositor, poeta, escritor, cineasta com assinatura em uma série de curtas e longas-metragens premiados no Brasil e no exterior, pintor e um dos precursores da Bossa Nova, Sérgio Ricardo é um artista multimídia graças à sua inquietação e que está sempre se revezando entre a música e o cinema, o cinema e a pintura, a pintura e a música”.
É dessa maneira que a jornalista Eliana Pace, autora de Sérgio Ricardo – Canto Vadio (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 144 pp., R$ 30), resume o significado do artista na abertura do novo livro da série Música da Coleção Aplauso. O lançamento será hoje (10), às 19 horas, na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37 – São Paulo/SP). A partir de 15 de maio, o título estará disponível para download gratuito no site da Coleção Aplauso.
Todo escrito em primeira pessoa, o livro percorre a vida de Sérgio, pseudônimo de João Lutfi, desde seu nascimento em Marília, interior paulista, no ano de 1930. Seu pai, comerciante, era “um grande contador de histórias” e leitor voraz, enquanto a mãe “cantava o tempo todo, até mesmo na cozinha ou lavando roupa”.
Sua infância foi típica de um menino do interior. Mais velho de quatro irmãos, aos 17 anos foi morar em São Vicente, com um tio. Ali trabalhou na Rádio Cultura, exercendo praticamente todas as funções. Pouco tempo depois realizou o sonho de ir morar no Rio de Janeiro, dessa vez com outro tio. Logo na seqüência, sua família também se mudou para a ainda capital federal.
Após uma breve e indisciplinada passagem pelo Exército, realizou o sonho de tocar piano na noite. Nesta fase fez amizades com diversos artistas que viriam a se tornar, como ele, expoentes da música nacional. Entre eles, Tom Jobim, João Donato, Johnny Alf e João Gilberto – de quem se tornou grande amigo e o influenciou a tocar violão.
Uma das curiosas passagens de sua vida aconteceu com Dick Farney, um de seus ídolos: “Ele veio durante o meu ensaio para ouvir Tu És o Sol, que eu tinha acabado de compor, e assim que saí do piano, sentou-se e aprendeu a música na hora. Impressionou-me a sua rapidez, cantou e tocou lindamente, dizendo que queria gravar a música. Fez apenas um reparo num acorde, queria mudar um mi bemol menor por um mi bemol maior, achava que ficaria melhor. Discordei e foi a maior burrice que fiz na vida”. Farney levantou-se do piano, foi embora e não gravou a música.
Entre idas e vindas, foi convidado para ser ator da TV Tupi e radioator da Rádio Tamoio. Depois, passou por várias emissoras, como ator, apresentador e diretor de programas, inclusive pela TV Globo. Sergio conta também sobre seu lado cineasta, tendo dirigido diversos filmes. Era grande amigo de Glauber Rocha – foi autor da trilha sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e de “Terra em Transe”, além de filmes de outros diretores – e conviveu com figuras como Roberto Santos, Cacá Diegues, Leon Hirzsman, David Neves, Ruy Guerra, Capovilla e Joaquim Pedro de Andrade. Como se não bastasse, Sérgio foi também ator teatral, tendo sido dirigido inclusive por Augusto Boal e Chico de Assis.
Fica clara no livro a contrariedade de Ricardo em rotular os gêneros musicais. Até mesmo sobre sua participação na “criação” da Bossa Nova o biografado mostra-se reticente: “Eu gostava muito dos shows que fazíamos, Pernas e outras composições minhas tinham a cara do movimento, mas eu não concordava com as regras estabelecidas pelo clubinho do Ronaldo Bôscoli: ser ou não ser Bossa Nova. Johnny Alf não era Bossa Nova, João Donato não poderia ser Bossa Nova, nem Vinicius com suas canções de amor maravilhosas que ganhavam uma nova dimensão e que fez uma revolução poética na música popular”.
Sua preocupação com as questões sociais brasileiras e sua ligação com os partidos de esquerda fizeram com que fosse censurado durante o regime militar. Criou o Circuito Universitário, pelo qual fazia apresentações com cenários improvisados em universidades e permitia a participação dos estudantes nas apresentações. Quanto mais a repressão aumentava, mais Sergio atuava nos “bastidores”, quase isolado, enquanto outros artistas exilavam-se.
Sobre o famoso episódio em que quebrou o violão no palco, durante o Festival da Record de 1967, Sergio explica que tinha a ver com o avanço da repressão. Mas as conseqüências não foram boas: “O pior foi estar, daí em diante, não só na mira da censura, mas na autocensura das gravadoras, rádios e TVs, fato que dificultava a divulgação do meu trabalho ou da minha contratação para shows. Até ser esquecido como artista”.
Sérgio é ainda autor de três livros e, atualmente, desenvolve outra de suas vocações artísticas: a pintura. No final do livro, há a discografia completa, todas as músicas compostas, as trilhas sonoras gravadas, os filmes dirigidos e os livros escritos.