
Literatura e ditadura
O dia começou com um painel sobre as relações entre a literatura e a ditadura militar brasileira (1964-1985): uma das constatações levantadas pelo mediador, o jornalista Eugenio Bucci, a partir da leitura dos livros dos três convidados – Ana Kiffer, Ana Cristina Braga Marques e Cadão Volpato – foi a seguinte: o silêncio ainda é uma forma de expressão literária da ditadura, ou, em outras palavras, ainda há uma espécie de interdito.
Kiffer lançou em 2024, pela Bazar do Tempo, No muro da nossa casa, em que estabelece um diálogo ficcional com a história real da sua mãe, presa e torturada pela ditadura. “O silêncio se coloca na história a partir da experiência do ‘inxílio’ (termo do meu pai [João Kiffer Netto], com um grau de censura introjetado muito cruel), é dessa ordem afetiva, em todos os níveis. É impossível dizer porque o silêncio significa a sobrevivência. Foi muito importante ler os testemunhos das mulheres no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que falam através do personagem da minha mãe no livro, para entender como esse sofrimento é vivido de maneira corpórea. O ‘personagem-silêncio’ vai lidando, de forma ambígua, com a linguagem, que nos fere, mas também nos libera de alguma forma”, disse a escritora.
Para Ana Cristina de Braga Martes, socióloga e pesquisadora com ampla experiência acadêmica que deixou a universidade para se dedicar à literatura, uma das questões mais importantes é justamente como escritores e artistas podem falar sobre política. “Sempre foi muito difícil falar sobre política no Brasil”, disse a autora de Sobre o que não falamos (34), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2024.
“Com a ditadura, toda a censura e prisões, e novamente durante o período Bolsonaro, ainda não conseguimos conversar sobre esse passado muito recente da ditadura militar. Agora, tem um componente que piora um pouco as coisas: as redes sociais impedem a palavra. O cancelamento, que vimos em várias situações, é um tipo de censura. Como a gente pode deixar a bandeira da liberdade de expressão na mão de pessoas que não tem nenhum compromisso com ela? Como ela pode estar na mão de pessoas que se dizem de direita? Ainda não falamos muito sobre nós. Ainda não aprendemos”, comentou a autora.
Cadão Volpato, por outro lado, lembrou da sua militância estudantil, em torno da qual construiu o romance Abaixo a vida dura (Faria e Silva), lançado em 2024.

O soneto
Mais tarde, dois poetas que cresceram em épocas semelhantes – um em São Paulo, outro no Rio – conversaram sobre o soneto e também sobre as relações da poesia com a política. Glauco Mattoso – que está lançando Amorosissimamente (Cloé) – e Paulo Henriques Britto – recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras – começaram a conversa falando como conheceram um ao outro nos anos 1980, no contexto de abertura política e poesia marginal.

Para Glauco – um glaucoma o deixou sem visão na metade dos anos 1990, daí o pseudônimo – o fator mnemônico é fundamental na poesia. “No meu caso, para memorizar, depois da cegueira, a métrica e a rima foram necessárias. Eu gostava da poesia virtual, do concretismo, mas ainda nos anos 1980 fiz uma transição para o soneto. Quando perdi a visão, fiquei desorientado, até planejando suicídio, tive inveja do Antonio Cicero”, comentou. “Interrompi a carreira literária, fui fazer produção musical, depois com o programa DOSVOX da UFRJ, voltei. Fiz uma tradução de Borges com o Jorge Schwartz, que ganhou um Jabuti, aí pensei que podia voltar para a literatura”, comentou.
A vida do editor
Um dos painéis mais disputados – algumas pessoas do público tiveram que aguardar o início da conversa do lado de fora do Auditório Armando Nogueira, anexo ao Museu do Futebol, um dos parceiros da Feira – foi uma entrevista com o editor e fundador da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz. Em debate com o jornalista Paulo Roberto Pires, Schwarcz falou sobre o livro O primeiro leitor – Ensaio de memória, lançado recentemente pela editora, com histórias e reflexões sobre o ofício editorial.
Ao agradecer a presença do público, ele disse gostar do papel de autor (“secundário na minha vida”). Questionado sobre a importância do acaso na vida profissional de um editor, confirmou uma impressão que fica da leitura do livro: “Não dá para atribuir tudo ao acaso, mas ele tem uma presença na nossa vida muito maior do que a que atribuímos a ele. Tem muitas coisas no meu livro para baixar a bola do editor, para que tenhamos mais humildade”, disse.

O nome do editor Jorge Zahar foi lembrado na mesa, bem como de outros mentores de Schwarcz, como José Paulo Paes, Paulo Francis e, especialmente, Caio Graco Prado, fundador da Brasiliense, empresa na qual Schwarcz começou sua carreira.
“A onda do trabalho de edição é acompanhar um trabalho de criação absoluta. Eu venero a produção literária, de certa maneira meu tesão era fazer essa arte solitária encontrar outras pessoas. É o encontro de duas solidões, como eu digo no livro”, afirmou.
Sobre o trabalho de escrever o próprio livro e ser editado, ele disse que “é uma complicação muito grande”, para mais risos do público. “Faço tudo que um autor inseguro faz. Sofro quando estou escrevendo, gosto mais de editar o próprio livro do que escrever, escrevo de maneira muito rápida, e fica ruim, por isso gosto de editar para melhorar um pouco, antes dos editores”.
Para ele, o livro bom é um livro que consegue ligar o escritor ao leitor. “Percebemos que o livro é grande ao ler e imaginar e recepção, mas ele vira um bom livro quando é lido. Isso permite o protagonismo criativo dos leitores. Pode ser para um público pequeno, não importa”, definiu.
Questionado sobre o posicionamento político da editora – que nas duas últimas eleições declarou apoio público aos candidatos do Partido dos Trabalhadores, contra o bolsonarismo –, Schwarcz disse que aprendeu de Caio Graco a ideia de que uma editora pode ter uma posição política.
“Com a ameaça da ultra-direita, pensei que ia ser grave para a cultura brasileira [a eleição de Bolsonaro em 2018]. Foi, mas menos do que eu imaginava. Preocupado com isso, resolvi declarar o voto no [Fernando] Haddad e conclamar outras pessoas a fazerem o mesmo. Depois recebi um telefonema do Fernando Henrique Cardoso, que falou que eu tive muita coragem de declarar o voto no perdedor”, contou.