Mais de 300 publicadores de diferentes partes da América Latina se reúnem para compartilhar suas ideias, criações e práticas na 11ª Miolo(s), que acontece neste final de semana na Biblioteca Mário de Andrade. Em um país onde os prazos são sempre curtos, saúdo a continuidade dessa trajetória iniciada em 2014.
Miolo(s) é uma feira de arte gráfica que é também um ponto de convergência, espaço físico e temporal de conexão e de troca de experiências. É um dínamo de ideias e entusiasmo gráfico – depois da Miolo(s), dá vontade de escrever, desenhar, imprimir, costurar, criar… verbos, verbos, verbos: ação.
Quero convidar o ecossistema da publicação a almejar isso de maneira obsessiva. Os desafios enfrentados por colegas dos países vizinhos são similares, embora, claro, atravessados por contextos específicos. São vivências que enriquecem o repertório e instigam a busca de soluções conjuntas. A Miolo(s), por exemplo, tem muito a absorver da Feria de Editores de Buenos Aires e a FILBo de Bogotá; digo o mesmo da perspectiva da livraria Banca Tatuí, plataforma de ensino Sala Tatuí, editora Lote 42 e todas as iniciativas que tocamos lá na rua Barão de Tatuí.
O que nos impede? O que nos impede de agir? O Brasil é isolado e se isola de seus vizinhos. Quem descobriu… - perdão, atenção ao verbo, atenção à ação. Quem invadiu a América foi Cristóvão Colombo, já quem descobriu o Brasil foi Cabral. A razão para esse desajuste está no idioma. Nosso território engoliu o português, enquanto que nuestros vecinos, el español.
A Miolo(s) é feita pela Lote 42, gerida por uma argentina, a Cecilia Arbolave, e eu, um brasileiro. Diante de 11 edições da Miolo(s), posso afirmar que a barreira da língua é mais psicológica do que prática: o português e o espanhol compartilham mais similaridades do que diferenças, vêm da mesma raíz, são latinas. O portunhol no es un defecto; é uma virtude, um esforço de comunicação.
Transitemos pelas "puertas abiertas de América Latina". Como Galeano nos ensinou, o nosso continente carrega uma história comum que deve ser motivo de união e orgulho. Há meios para ficarmos mais próximos. Existem 480 milhões de dispositivos digitais em ação só no Brasil, 2,2 para cada habitante, aparelhos que podem ser usados para facilitar a comunicação, tradução e o aprendizado.
Ao mesmo tempo, esse contexto tomado pelo digital nos desafia a repensar o impresso. A tecnologia coloca em xeque a própria definição de inteligência e de humanidade. É essencial fortalecer manifestações expressivas como as publicações gráficas nas suas mais variadas formas.
Do contrário, o futuro não será nem em português ou em espanhol, mas em inglês, o idioma do mercado, que quer nos colocar com um mindset passivo diante do streaming do app, uma massa colonizada, orientada a aumentar o faturamento. No ano passado, apenas uma ficção feita por uma autora brasileira esteve entre os dez livros mais vendidos, algo que já não causa espanto. Aceitamos tal fato com normalidade.
A Miolo(s) recebe os publicadores desinteressados em estar na lista de mais vendidos, guiados acima de tudo pelo desejo expressivo. O tema é o gesto por trás da impressão artesanal. A mostra À MÃO, que organizamos junto com Gustavo Piqueira e erguemos com os trabalhos dos próprios expositores, ocupa a Hemeroteca Mário de Andrade durante a Miolo(s) para celebrar as técnicas artesanais de reprodução. A ação de materializar o pensamento criativo, com o método integrando a expressividade, reforça a autonomia dos publicadores sobre os meios de produção. E para nós, latinos, a autonomia é algo que compreendemos e buscamos incansavelmente.
A Miolo(s) é isso, um mosaico que toca a formação, crítica e diálogo; é construção coletiva. Nos próximos dois dias, teremos aqui nesta biblioteca a maior feira Miolo(s), uma rede de apoio, de amizade, de parceria, de camaradagem. Ação e esperança. Agradeço por fazerem parte dessa história.
Leia o discurso do Giro Miolo(s) de 2023
*João Varella é um dos fundadores da editora Lote 42 (2012), livraria Banca Tatuí (2014), escola de edição Sala Tatuí e da Miolo(s). Jornalista, colaborou com reportagens para diversos veículos. Escreveu, entre outros, os livros 'Me tirar da solidão' (Barbante, 2022), 'Videogame pandemia' (Elefante, 2021) e 'Videogame, a evolução da arte' (Lote 42, 2020).