
Ao revisitar seus diários de infância e adolescência – “um oceano de constrangimento” –, as lembranças ora cômicas ora angustiantes da pandemia – “até aqui, tenho três cadernos inteiramente destruídos” – e diários de personalidades célebres e anônimas, a escritora cria um mosaico sobre o gênero literário notadamente confessional, que, como crônicas efêmeras, capturam um estado de espírito e o retrato de uma época. A esses vestígios, somam-se reminiscências dos relatos de seu avô escritos durante sua participação na Segunda Guerra Mundial.
“O livro surgiu a partir de algumas inquietações provocadas pelo primeiro ano da pandemia, um evento de proporções radicais, que tentei apreender em diários e textos escritos no calor da hora. Tudo era terrível e extraordinário, uma experiência coletiva e individual ao mesmo tempo, um assunto incontornável. Aquele material bruto foi revisitado a partir de 2022, e comecei a cortar e acrescentar novos trechos, costurando com leituras de diários diversos, tanto meus, da infância e adolescência, quanto diários de grandes escritores.”, explica Julia Wähmann.
Carlos Drummond de Andrade escreveu diários por cerca de 30 anos, e, ao longo deste tempo, pareceu se perguntar, algumas vezes, o porquê de se escrevê-los, atividade que ele caracterizou como um “mirar-se no espelho do presente”. No fim dos anos 1960, a mãe de Annie Ernaux queimou os diários da filha, certa de que o fazia em nome da “saúde social” dela. Ainda assim, “A verdade sobreviveu ao fogo”, vaticinou a escritora francesa. É a partir dessas leituras que o livro investiga a própria matéria de como a realidade é forjada e qual é a distância que separa a ficção das coisas reais.
“Toda memória é moldada por elementos externos, ao menos em alguma medida – pode ser a escrita de diários, pode ser uma foto, as diversas versões de um mesmo fato contado por outras pessoas. Ao longo da escrita deste livro, me vi confrontada com anotações contrárias a certas lembranças, o que me fez questionar: se eu não tivesse escrito tal coisa ou tal pessoa, será que me lembraria? Não tenho as respostas, mas se tivesse, desconfio de que não haveria este livro”, questiona a autora.
Como em um feed literário, Julia Wähmann muda de tema como quem vira a página do livro, e intercala passagens do passado recente com histórias registradas em tempos históricos e por personagens distintos, que se revelam a partir de notas do efêmero. Ao adentrar pela janela indiscreta de diários aleatórios, com suas verdades íntimas e inconfessáveis, traça uma genealogia do gênero, criando um meta diário. Nesse flagrante de frações do tempo, a autora descreve a vida acontecendo em sua mais ordinária banalidade. E, no momento seguinte, vislumbra o núcleo da dramaticidade da vida, aquele instante da história em que ninguém sabe, apenas a posteridade saberá julgar.
Sobre a autora
Julia Wähmann nasceu no Rio de Janeiro em 1982. É autora dos romances Cravos (2016) e Manual da demissão (2018) e do infantil Dilermando, o cão (2023). Teve textos publicados no jornal O Globo e na revista Granta em Língua Portuguesa, entre outros.