Julia é uma das pessoas envolvidas com o mundo do livro que foram diretamente afetadas pela tragédia climática. Livrarias, editoras e outras empresas relacionadas ao setor iniciaram na semana passada o processo de limpeza e cálculo dos danos. As estimativas apontam para centenas de milhares de livros perdidos nas enchentes, além de prejuízos pessoais de muitos profissionais diretamente atingidos e rombos no orçamento por conta de problemas logísticos de armazenamento e transporte, entre outros.
Pelo menos 36 empresas já responderam a um questionário elaborado pela Câmara Rio-grandense do Livro para mapear perdas e estragos entre as organizações do setor. Cerca de 57 gráficas também tiveram suas instalações atingidas pela enchente.
“No primeiro momento, entendemos que a ação era o acolhimento das pessoas que perderam tudo, e nesse sentido conseguimos ajudar nos resgates”, conta o editor e presidente da Câmara, Maximiliano Ledur. “Já fizemos também ações de distribuição de livros nos abrigos, por exemplo, e estamos utilizando recursos da entidade para contratar pessoas para ajudar a tirar lama e resíduos de depósitos de livros e de outras instalações. Agora sim, temos que buscar projetos, elaborar planos e levantar recursos para subsidiar o setor”, conta.
Para ele, uma das chaves para o mercado retomar alguma normalidade possível na situação é a engrenagem (da compra e venda de livros) voltar a girar. “Faço um apelo, como presidente da Câmara, para que as grandes editoras reponham os estoques o mais rápido possível. Essa engrenagem precisa voltar”, explica.
Livrarias
Isso porque livrarias foram duramente atingidas. A Livraria Cameron – que conta com 11 operações no Estado – tinha três lojas no Aeroporto Salgado Filho, que deve ficar fechado até dezembro. Uma delas foi completamente danificada, e as outras duas estão fora da área inundada, mas inacessíveis. O Centro de Distribuição (no bairro São Geraldo, em Porto Alegre), dois depósitos com livros (no Humaitá) e um depósito de mobiliário (no Sarandi) utilizado em feiras realizadas pela rede ao longo do ano, todos foram inundados e destruídos. “Muita sujeira ainda, muito entulho. O pós é terrível”, relata o sócio-gerente da Cameron, Delamor Dávila. “Não se sabe o que está naquele lodo todo que ficou. Pode ter produtos químicos, farmacêuticos, animais mortos, tudo que você possa imaginar. O cheiro é absurdo”.
Ele relata que as equipes de limpeza conseguiram até o início desta semana limpar metade do CD, onde também fica a base operacional e administrativa das lojas.
As empresas passaram o mês lidando com as questões emergenciais ligadas diretamente à vida das pessoas – funcionários que perderam casas e carros, por exemplo – e, nos últimos dias, já estão entabulando negociações com as editoras para ajustar, suspender ou reprogramar pagamentos.
“A gente priorizou os funcionários”, explica o proprietário da Livraria Santos, Jonatas Santos. “Suspendemos pagamentos para os fornecedores, mas todo mundo recebeu normalmente o salário de maio. Procuramos identificar quem foram os mais afetados: colaboradoras de Canoas e uma de Cachoeira do Sul perderam tudo. Tentamos antecipar férias, 13º, conseguimos levantar doações e estamos direcionando”.
O passo seguinte é a negociação com as editoras. “A minha maior necessidade como proprietário, além de manter a calma, é o recurso financeiro. Meu apartamento não foi atingido, fiquei três semanas fora do Estado e consegui me organizar. Preparei um comunicado, pedi ajuda para as editoras. Pedimos para isentar pagamentos programados para esses meses, de uma maneira diferente. Algumas estão ajudando, outras fazem contrapropostas, outras aceitam apenas prorrogar…”, compartilha.
“São duas premissas agora. Uma é que sem a consideração das editoras com o que aconteceu, os grandes grupos daqui, redes e livrarias, não vão conseguir voltar. Não tem retomada possível sem esse aspecto. A outra é que eu não vi segmento nenhum que tenha se mobilizado tanto para que essa recuperação aconteça. As editoras estão abraçando a causa. Até agora já falei com 30 a 40 editoras, e não recebi ‘não’ de nenhuma. Todas estão pedindo para quantificar e passar para analisar. O trabalho tem que se formatar para que haja reposição dos estoques. Temos 11 lojas. As livrarias que têm apenas uma loja precisam correr mais rápido ainda. Tem muitas nessa situação”, analisa.
Ele conta que a rede tem 89 funcionários, e todos foram realocados para as lojas que estão em funcionamento. “O problema maior está na reposição do consignado”, comenta Delamor. “Atualmente, o estágio ainda é de avaliação dos danos. Ainda não conseguimos apurar nem 50% do estrago”.
Para Jonatas, da Santos, as prioridades agora são garantir os empregos dos funcionários e iniciar a reconstrução, que passa pela negociação dos livros e por questões de mobiliário e equipamentos.
Outras empresas
O editor e sócio da Zouk Editora, João Xavier, comenta que seu estoque fica no bairro Floresta, em um local a 20 metros de onde as águas chegaram, e portanto não foi diretamente avariado. Mas as dificuldades de transporte e operação causaram uma queda de 85% na receita da empresa em relação ao mês de abril.
“Nos últimos dias, os Correios já voltaram a operar os chamados ‘registros módicos’ [serviço de envio de livros] e conseguimos atender clientes que compram pelo site, por exemplo. O serviço das transportadoras, cuja maioria fica numa região bastante alagada, foi muito afetado, e além disso as principais vias de acesso estavam interditadas. Conseguimos recuperar esse trabalho de transporte na sexta-feira passada (31), para voltar a atender pedidos das livrarias maiores”, afirma.
Uma das consequências – que pode ter efeitos mais agudos em editoras independentes, por exemplo – é a necessidade urgente de reorganizar calendários e planejamentos de longo prazo. “Mas ainda temos colegas de outras editoras em situações muito piores, tirando lodo dos seus depósitos há três dias”, conta.
Xavier também é presidente do Clube dos Editores do Rio Grande do Sul, entidade que reúne os produtores de livros em ações de defesa ao setor. Uma das campanhas já em curso prevê divulgar editoras e livrarias gaúchas.
O CEO da TAG – Experiências Literárias, Gustavo Lembert, conta que a sede administrativa da empresa, no bairro de Navegantes, foi completamente inundada – o prejuízo não é maior porque a operação logística atualmente se dá a partir de São Paulo. “Aqui na sede perdemos tudo. Cerca de 20 notebooks, monitores, iMacs, impressoras, material e equipamentos. Tínhamos 500 livros, nossos do escritório, um acervo próprio. Nesse caso, o principal são perdas simbólicas, edições especiais, autógrafos, quadros que usamos… coisas que constituem a história da empresa. Mas todo o mobiliário se foi: mesas, cadeiras, estantes, armários. A estimativa inicial é de R$ 150 mil a R$ 200 mil de prejuízo”, conta. Em Porto Alegre, são cerca de 23 colaboradores.
Segundo o empresário, as entregas do clube de leitura no Rio Grande do Sul foram afetadas em maio, e foram suspensas cobranças, ações de marketing e de anúncios, entre outras ações que já afetam o funcionamento da empresa. “Tivemos uma perda significativa de arrecadação. Esperamos compensar, mas no curto prazo a receita de maio foi bastante prejudicada”, conta.
Futuro
Maximiliano Ledur, da Câmara Rio-grandense do Livro, conta que uma próxima etapa na entidade é justamente buscar recursos e elaborar junto ao poder público planos de recuperação. “A economia criativa é a segunda indústria no RS que mais emprega. Então, muita gente perde o emprego, e isso vai longe porque a reconstrução é lenta. Economia criativa é a primeira que para e é a última a voltar, foi assim na pandemia. Mas a cultura ajuda não apenas as pessoas que estão diretamente nela envolvidas”, relembra.
Ele indica que vai realizar a Feira do Livro de Porto Alegre, marcada para este ano de 1º a 20 de novembro. Esta será a 70ª edição do evento. “Vamos fazer de tudo para ocorrer. Durante a Feira, circulam 1,5 milhão de pessoas. Ano passado foram mais de 70 expositores e 140 mil livros vendidos, é uma feira de rua, muito democrática”, explica. Fora isso, a entidade está em contato com diferentes agentes públicos e outras instituições do livro Brasil afora, segundo o presidente.
Para Jonatas, contar com a solidariedade dos parceiros profissionais é importante neste momento de reconstrução. “Na nossa situação, como a gente tem outras lojas que não foram diretamente atingidas, essas lojas seguem e vão ajudar a nos reconstruir. Em maio, as lojas da capital as vendas baixaram muito. Em contrapartida, no interior, foram meses relativamente normais, não foi tão impactado. Certamente será um desafio muito grande, mas com solidariedade, ajuda dos parceiros… não vejo como algo muito grave a longo prazo, acho que vamos reconstruir. Se o pessoal continuar ajudando como tem ajudado, vamos recuperar”,
Delamor pede ainda para a reportagem citar a inauguração uma nova operação no Iguatemi Shopping, em Porto Alegre – uma espécie de quiosque que começou “super bem”. “Essas pequenas coisas também dão esperança”, diz.
Como ajudar o setor livreiro no Rio Grande do Sul:
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