Seu quarto livro, que contou com mentoria da escritora cearense Jarid Arraes, foi contemplado pelo edital do Programa de Ação Cultural do Governo de São Paulo (ProAC/SP). Segundo a autora, o livro mostra como a política afeta diretamente a vida das pessoas. “Não podemos simplesmente dizer que não gostamos desse tema. Tudo é política”, enfatiza. Vera argumenta também que a obra retrata uma época anterior a muitos avanços nas pautas relacionadas aos direitos femininos. “Vivenciei o mundo antes e depois do ‘não é não’, e sei do impacto que isso teve para as mulheres. Não conheço uma mulher com mais de 40 anos que não tenha sofrido abuso sexual, e o que é pior, sem ter consciência de que aquilo era um abuso”, revela Saad.
Pautando política e trauma, obra discorre sobre temas por meio do olhar de uma pré-adolescente
A face mais doce do azar (Claraboia) é narrado a partir das percepções de Dubianca, uma menina na pré-adolescência, inteligente e sensível. No começo da obra, a garota, também chamada de Dubi ou Bianca, vive na pele os desacertos da política econômica brasileira ao precisar se mudar, junto com os pais, para o porão da casa dos tios após a família perder a estabilidade financeira e com ela a moradia.
O novo endereço marca o início de uma fase complexa e intensa na vida da menina. Os anos seguintes seriam um microcosmo da ebulição em que o país vivia. Dubi vai vivenciar o surgimento das desavenças entre seus pais e tios, o movimento de aproximação e afastamento da prima com quem convive, a descoberta da atração sexual, os desafios de tornar-se mulher numa sociedade machista, além de se embrenhar no mistério que envolve seus vizinhos e o trauma de perder uma pessoa próxima.
O adolescer também é um dos assuntos em alta na obra. No livro, Vera nos apresenta uma protagonista cativante, por vezes ingênua, cuja abundância de vida passa a murchar, pancada após pancada, e que compartilha conosco, de modo íntimo, seus pensamentos conflituosos e a doçura fugitiva da sua adolescência. Dubi poderia ser muitas de nós, meninas e mulheres, invisíveis entre adultos e homens que miram seus olhares para o que julgam mais importante – ou mais explorável.
Em A face mais doce do azar há um resgate dos anos de 1990 e da memória de quem vivenciou o período. Em especial, retratar o aspecto político daquela década e mostrar que os humores da população em relação à política já apontavam em divergências e estranhamentos. No livro, essa polarização é incorporada pelos adultos da trama que se digladiam com visões opostas e conflitantes. Os fatos narrados na obra, como a eleição, debates e ações do governo são detalhados.
Para a ficção, Vera relegou uma vertente da trama que flerta com uma realidade vivenciada por milhares de brasileiros na época e retrata a dimensão emocional do congelamento das poupanças. Reportados pela mídia ou contados a “boca pequena”, sob vergonha e sigilo, há centenas de relatos de pessoas que foram afetadas mentalmente pela ação governamental e das que tiraram a vida por conta disso. No livro, um dos personagens que orbita a vida da menina, desaparece sem deixar rastros, vítima da desestruturação econômica provocada pelo governo.
Além de política e governo Collor, Vera elenca também como temas do livro família e abuso sexual. “Como o livro trata de uma família, pensei que a menina é sempre o lado mais frágil da corda. Quis dar voz a essa garota, seria a vez dela de contar a própria história”, argumenta a autora. Há uma sutileza na inserção do assunto ao mesmo tempo que a escritora consegue criar uma atmosfera de tensão crescente entre as duas personagens envolvidas no ato. O livro retrata ainda o efeito devastador que essa perversão causa na vida de uma pessoa.