Fabrício Corsaletti e seu 'Engenheiro fantasma', do sonho ao Jabuti
PublishNews, Ricardo Arcon, 12/12/2023
Os bastidores do Livro do Ano da mais tradicional premiação literária do país

Fabrício Corsaletti na cerimônia do Prêmio Jabuti, após receber o prêmio de Livro do Ano | © CBL
Fabrício Corsaletti na cerimônia do Prêmio Jabuti, após receber o prêmio de Livro do Ano | © CBL
Último ato daquela noite de 5 de dezembro, ao longo da qual já haviam sido premiados quase 30 escritores e outros profissionais do mercado editorial brasileiro. No palco do Theatro Municipal de São Paulo, a jornalista – e mestre de cerimônias – Sandra Annenberg, não sem antes fazer algum suspense, anuncia o Livro do Ano da edição de número 65 do Prêmio Jabuti, a mais tradicional premiação literária do país: “Categoria: Poesia. Título: Engenheiro fantasma”.

Depois dos aplausos da plateia, da caminhada ao palco, dos abraços e congratulações, o poeta Fabrício Corsaletti assume o microfone: “Estou totalmente chocado com isso, eu não esperava mesmo ganhar... Quero agradecer à Companhia das Letras, que sempre me apoia nos projetos mais malucos que invento, e este foi particularmente diferente”.

Escrito em nove dias, Engenheiro fantasma tem origem onírica. Como o autor conta no prólogo, na noite de 7 para 8 de setembro de 2020 sonhou que estava em Buenos Aires, acompanhado por familiares e um bebê de três olhos, quando, pela porta do hotel, entram Bob Dylan e os seus. Os fortuitos encontros se repetiriam em vários lugares. “Logo entendi que aquele era o verdadeiro Dylan; o outro, que ganhou o Nobel, era seu duplo”, lê-se no texto introdutório. O sonho, no entanto, termina antes do clímax, assim que Fabrício estende o braço para apanhar 200 Sonnets, um volume de sonetos ambientados na capital argentina que fora publicado nos primeiros anos de Dylan vivendo na cidade. Os portenhos adoravam esse livro de poemas.

Já desperto, mas com tudo aquilo fresco na cabeça, o escritor paulista vai ao computador e cria um primeiro soneto – composição poética de 14 versos (em geral, decassílabos) divididos em quatro estrofes. Entre os dias 8 e 17, produz os 56 sonetos de Engenheiro fantasma, nos quais Bob Dylan narra sua vida em Buenos Aires – lugar em que jamais viveu. Fabrício se põe na pele de Dylan, e o resultado são textos literários que não se sabe se ditados do primeiro para o segundo ou o contrário.

“Com certeza Dylan poderia ter vivido em Buenos Aires. A cidade tem tudo a ver com ele. Na decadência, na elegância, na grandeza, na soberba eventual... Na estrutura urbana, na cidade labiríntica do Borges e Bioy Casares, na cidade onde ainda ecoa o tropel dos cavalos dos índios pampeanos, que destruíram a primeira Buenos Aires, em 1534”, diz o jornalista e escritor Eduardo Bueno, o Peninha, profundo conhecedor da vida e obra do letrista norte-americano. “Na minha cabeça, achei ressonâncias de tudo isso aí, ao acompanhar a voz poética do Fabrício, que se juntou a voz poética do Dylan, criando uma amálgama, uma outra voz. O Fabrício recebe a luz dylanesca, incorpora o personagem e captura várias possibilidades irreais das múltiplas vidas do Dylan. Adorei o livro”.

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Nascido em Santo Anastácio, interior de São Paulo, em 1978, Fabrício Corsaletti se formou em Letras na Universidade de São Paulo e lançou seu primeiro livro de poesia, Movediço, pela Labortexto Editorial, em 2001. Publicou, no total, 22 livros (contos, crônicas, poemas, infantis e novela) e uma profusão de colunas na imprensa. Em 2005, morou por seis meses em Buenos Aires, para onde já foi cerca de dez vezes. “Talvez seja a minha cidade preferida no mundo. É um lugar para o qual sempre quero voltar”, diz.

A relação próxima com a capital portenha e os escritores argentinos, em especial Jorge Luis Borges, deu a Fabrício ferramentas para conceber Engenheiro fantasma. Outras vieram dos “quase vinte anos estudando Bob Dylan”. Quanto ao livro ter sido escrito em nove dias, o autor afirma que, na verdade, demorou mais: quase 42 anos, sua idade naquele setembro. Engenheiro fantasma, nome original de uma música do bardo depois rebatizada, pode-se dizer, é fruto da união de um repertório construído durante uma vida inteira e da singularidade de um momento específico: “Estava na pandemia, eu trancado em casa, uma coisa que acabou me dando uma concentração maior... E também eu tinha acabado de estudar longamente o Borges”.

No terceiro dos nove dias, sob a crença de que tinha em mãos algo “diferente”, Fabrício Corsaletti entrou em contato com Alice Sant’Anna, editora na Companhia das Letras. Enviou-lhe parte dos sonetos, e o interesse foi imediato. “Percebi na hora que ele estava muito afiado e inspirado”, recorda. Alice, então, falou que tinha gostado muito dos sonetos. Antes de bater o martelo, porém, ela precisava receber e examinar todo o material, finalizado. O resto é história: recebeu, disse que iriam publicar e... ganhou, no palco de um Municipal praticamente lotado, talvez o mais apertado dos abraços que Fabrício deu naquela noite, ali na cerimônia.

Alice Sant'Anna e Fabrício Corsaletti, nos bastidores do Prêmio Jabuti 2023 | © CBL
Alice Sant'Anna e Fabrício Corsaletti, nos bastidores do Prêmio Jabuti 2023 | © CBL
Também poeta, a editora diz que Engenheiro fantasma é de fato especial. “É um livro com uma unidade muito coesa, que cria um universo fictício pouco comum de se ver – não se trata de uma reunião de poemas com um eixo temático mais ou menos delimitado. Nesse sentido, é realmente único: a voz do Dylan e a do Fabrício se confundem em poemas que mostram um flâneur perdido numa cidade estrangeira, pensando sobre desilusões amorosas, poesia, bares, cafés, sonhos e tudo que poderia ser e não foi. Essa mistura de poesia com ficção é o grande barato do livro”, avalia ela, que ainda destaca o aspecto técnico da obra. “A ideia, vinda de um sonho, é realizada de uma maneira totalmente trabalhada, com rigor métrico. Isso mostra que o Fabrício, além de tudo, é um grande conhecedor das formas fixas.”

O soneto preferido de Alice Sant’Anna, o 36:

"o futuro chegou, veio quebrado
o carteiro parece deprimido
meu café da manhã é um comprimido
e o jornal atual do mês passado

você escolheu o marinheiro errado
estou cheio de cera nos ouvidos
toda canção é feita de ruídos
em breve atracaremos do outro lado

o vento é doce, os animais, divinos
você lamenta, eu lamento também
sua analista acha que eu não presto

amanhã vou comprar um violino
libertar o penúltimo refém
rasgar as cartas e queimar o resto"

Se Engenheiro fantasma foi escrito em pouco mais de uma semana, levou um ano e meio até que fosse lançado, em 3 de março de 2022, período durante o qual passou por alguns ajustes, além de todos os trâmites que envolvem a publicação de um livro. Recebeu, no geral, menções e textos positivos na imprensa. “Talvez não se trate exatamente do Fabrício de sempre, a operação é nova, ou pelo menos mais radical. Mas dentro de uma mesma ideia, a de reutilizar formas poéticas tradicionais — como ele já fez com a quadra popular e a balada — para trabalhar nelas a sua própria dicção. Agora a forma tradicional em questão, o soneto, recebe o enxerto de uma poética alheia (que, claro, não é qualquer uma...), produzindo uma colheita generosa”, escreveu o poeta João Bandeira, na revista Quatro Cinco Um. Na Folha de S. Paulo, o jornalista Ivan Finotti registrou que o livro alcança, “em diversos bons momentos”, a meta de criar imagens e surpreender, misturando o clássico e o moderno, o sóbrio e o cômico.

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Theatro Municipal de São Paulo foi palco da cerimônia do 65º Prêmio Jabuti | © CBL
Theatro Municipal de São Paulo foi palco da cerimônia do 65º Prêmio Jabuti | © CBL
O Prêmio Jabuti de 2023 teve 4.245 obras inscritas e 21 categorias, divididas nos Eixos Literatura, Não Ficção, Produção Editorial e Inovação. Engenheiro fantasma venceu na Categoria Poesia – a campeã de inscrições, ao menos nos últimos anos –, da qual foram finalistas A água é uma máquina do tempo (Círculo de Poemas), de Aline Motta; Alma corsária (34), de Claudia Roquette-Pinto; Araras vermelhas (Companhia das Letras), de Cida Pedrosa; e Fim de verão (Companhia das Letras), de Paulo Henriques Britto. “São todos livros excelentes. Merecem ser lidos e comemorados”, diz um dos três jurados da categoria. “Sobre Engenheiro fantasma, digo que é um feito: inventivo e tecnicamente impecável. E o Fabrício é das pessoas que mais entendem de poesia no Brasil”.

Meses antes da cerimônia, cada um dos jurados – Angélica Freitas, Carlos Vogt e Lubi Prates – teve acesso a centenas de títulos, a totalidade de inscritos em Poesia. “Eram mais de 400, em PDF.” O passo seguinte foi selecionar 13 e a eles atribuir notas (veja aqui o regulamento), observando os seguintes critérios: domínio das técnicas do gênero para reafirmá-las ou subvertê-las; inventividade e sonoridade na relação entre forma e conteúdo; e interlocução com outros estilos e autores. Feita a contabilização, as dez obras com as notas mais altas foram divulgadas numa lista de pré-finalistas. Depois, a organização do prêmio revelou as cinco mais bem colocadas, os finalistas da(s) categoria(s). Os jurados do Jabuti não sabiam a identidade uns dos outros e só conheceram os vencedores quando anunciados na premiação.

Laureado em Poesia, Engenheiro fantasma tinha garantido vaga para a disputa de Livro do Ano. Desde 2018, concorrem juntos livros de ficção e de não ficção. Neste ano, 14 obras – as premiadas nos Eixos Literatura e Não Ficção –, dos mais variados segmentos e estilos, estavam no páreo, entre as quais Os perigos do imperador (Companhia das Letras), de Ruy Castro (vencedor em Romance Literário); Dentro do nosso silêncio (Bestiário), de Karine Asth (Romance de Entretenimento); Óculos de cor: ver e não enxergar (Companhia das Letrinhas), de Lilia Moritz Schwarcz e Suzane Lopes (Juvenil); Poder camuflado (Companhia das Letras), de Fabio Victor (Biografia e Reportagem); e Limites da democracia (Todavia), de Marcos Nobre (Ciências Sociais).

O de Fabrício Corsaletti foi eleito Livro do Ano por ter recebido a maior nota atribuída pelo júri entre as categorias desses dois eixos. Quatro das últimas seis edições do Prêmio Jabuti tiveram como Livro do Ano o ganhador na Categoria Poesia, o que, para Hubert Alquéres, curador desta 65ª edição, “é um indicador da força e da relevância do gênero na literatura brasileira contemporânea”.

Além da estatueta, o poeta garantiu o prêmio de R$ 70 mil (outros R$ 5 mil por ser o ganhador em sua categoria) e uma viagem, com passagem aérea e outras despesas pagas, para a Feira do Livro de Frankfurt, o maior evento do mundo quando o assunto é mercado editorial. Lá, vai ter a oportunidade de cumprir uma agenda de reuniões com editores, agentes literários e escritores de diferentes países. Todos esses desembolsos são um oferecimento da Câmara Brasileira do Livro, realizadora do Jabuti.

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O leitor atento deste texto pode ter se perguntado, ou estar se perguntando, sobre o paradeiro dos 144 sonetos restantes – a diferença entre os 200 sonnets e os 56 do Livro do Ano do Jabuti. Segundo o prólogo, “estão perdidos por aí”. No caso de alguém pensar em procurá-los, o fã de Engenheiro fantasma talvez recorra a um trecho do soneto 30, algo que o narrador diz ter ouvido de um bruxo: “Cara, a vida é uma piada/Não perca tempo caçando tesouros”.

Engenheiro fantasma
Autor: Fabrício Corsaletti
Editora: Companhia das Letras
128 pp. | R$ 54,90



[12/12/2023 10:20:00]