Entre o objeto e o ser, fico com o ser
PublishNews, Afonso Martin*, 13/12/2016
Afonso Martin, ex-presidente da ANL, comenta os resultados do PISA e, a partir deles, critica o atual modelo de compras governamentais de livro no Brasil

Na última sexta-feira (09), o jornal El País publicou matéria sobre o desenvolvimento da qualidade educacional em Portugal e seus resultados no Relatório Educacional PISA. Apesar das adversidades impostas ao país, efeitos da maior crise econômica dos últimos 100 anos, Portugal é o único país da Europa que continua obtendo melhoras ininterruptas nos resultados do PISA desde 2000, quando passou a integrar o relatório.

O resultado é significativo, já que o orçamento destinado a educação portuguesa e até mesmo dos salários dos professores sofreram cortes e reduções impostas pela Troika, política de resgate financeiro conjunta entre FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia para países como Chipre, Grécia e Irlanda, além de Portugal.

A leitura da matéria, que traz diferentes perspectivas sobre a questão, é certeira no motivo de evolução apesar das dificuldades: investimento e dedicação prioritários na aprendizagem da língua, meio pelo qual toda e qualquer outra aprendizagem é dependente.

Não me canso de pensar que esta foi a mais importante e mais fundamental mudança social e cognitiva na espécie humana: a linguagem e sua correspondência gráfica. Um meio pelo qual hoje naturalmente todos nós nos comunicamos seja via códigos de desenvolvimento em TI ou juras de amor numa árvore. A prioridade nesta área de aprendizagem é fundamental para o estabelecimento de diversos parâmetros sociais e cognitivos que auxiliam um indivíduo se compreender como um cidadão. Pertencente a um coletivo, de uma nação, e assim compreender-se um ser de direitos e responsabilidades diante de si e dos seus.

Mas, o que me chamou mesmo a atenção na matéria foi seu parágrafo final, enquanto Portugal só a partir do próximo ano, passará a distribuir gratuitamente aos alunos todos os livros de textos ao Ensino Geral Básico, o Brasil começou a adotar esta política na primeira metade do século XX. Com grande investimento durante a Ditadura Militar e, após considerável redução, foi retomado nos anos 1990 até a adoção do atual PNLD, nos anos 2000, com contínuo incremento financeiro na compra e distribuição de livros até a atual e já conhecida conjuntura.

Sem dúvida, tivemos uma evolução salutar na educação brasileira a partir da última década do Século XX, com desenvolvimento mais significativo nos últimos 15 anos, mas ainda assim, estamos muito longe de acharmos que estamos satisfeitos com o que oferecemos as novas e futuras gerações de cidadãos brasileiros. Estamos tão distantes desta realidade que ainda hoje, sim, acho supérfluo ou mesmo superficial, o investimento que se fazia na compra de livros enquanto ainda discutimos o devido, merecido e justo reconhecimento financeiro do professor, que é na verdade a quantificação objetiva do reconhecimento simbólico do professor para a sociedade brasileira.

Sim, era muito legal continuar dizendo: somos o 2° maior comprador de livros do mundo. Seja lá o que isso queria dizer. Mas, a maneira como estávamos e ainda estamos a valorizar isso é simplesmente hipócrita. Quando nossos educadores, nossas escolas e suas estruturas físicas, nossas bibliotecas, e toda nossa estrutura educacional para a aprendizagem esta relegada à fala de: “estamos fazendo o possível”. Ou o famoso veja o copo meio cheio. Acontece que este possível, simplesmente não é suficiente para nosso sossego. A compra de livros tem servido como ótima propaganda demagógica, que tem causado inclusive a ressignificação do livro de objeto transformador à brinquedo pedagógico ou mera ferramenta.

Essa propaganda intelectual também tem servido à paz de uma determinada elite estranhamente cultural, assim como uma hemodiálise de um frágil mercado editorial. É como num berçário se investir na quantidade e qualidade de brinquedos e objetos disponibilizando todos gratuitamente para as crianças, enquanto os profissionais mais honrosos e essenciais as quaisquer sociedades estão tendo que se dedicar em condições de grandes dificuldades e adversidades, para dizer o mínimo.

Em um país em que ainda estamos discutindo questões primordiais numa sociedade moderna, como identidade, cidadania, respeito, democracia e igualdade, não posso jamais dizer que o acesso ao livro seja supérfluo. No entanto, diante da falta de prioridade do investimento no educador e na estrutura para com a vivência educacional, o acesso ao livro pode ser feito de outra maneira. Até estarmos numa realidade educacional mais satisfatória, não podemos como sociedade, demandar a distribuição de livros bancada pelo contribuinte e a serviço da subsistência empresarial.



* Afonso Martin é pai por opção. Ex-Presidente da ANL (Associação Nacional de Livrarias), trocou a tradicional livraria de bairro em São Paulo para ser consultor internacional em Berlim. Com passagens em diferentes áreas da cultura, tanto no setor público como no privado, acredita no livro como ferramenta de empoderamento humano.

[13/12/2016 10:25:00]