Não é preciso falar sobre a comoção nas mídias sociais com o caso da possível destruição de livros remanescentes em estoque na Cosac Naify. Aliás, o que não causa comoção nas mídias sociais hoje em dia?!... Uma das ideias que surgiu foi a de doar todos os livros. Afinal, seria uma atitude nobre que, mais do que manter viva a qualidade editorial da Cosac, daria acesso ao conteúdo a muita gente.
Quando essas ideias surgem, ainda mais na internet, a tendência prevalecente é desconsiderar a realidade. No caso, vê-se isso claramente. Em muitos comentários e posts que li, era como se estivesse escrito: “Ah, esses facínoras que trabalham como editores, não veem o desserviço que prestam com uma atitude desprezível como essa!...” E dá-lhe indiciamento no mundo virtual pelo “crime de usura” representado pela atividade empreendedora... “Essa sanha capitalista dos editores, eles não aprendem!”... Falarei mais a respeito dessa imagem distorcida dos editores dentre alguns incautos em futuro artigo. O fato é que qualquer ideia passível de execução no mundo real padece de um problema: seu custo.
Doar livros custa. E como! As editoras recebem quase diariamente pedidos de doação de livros. De presídios, de escolas no interior de Roraima, de fundações das quais nunca ouvimos falar, de pessoas alegando dificuldades financeiras, enfim... Se atenderem a todos os pedidos, terão de rodar tiragens só para as doações! E, na maioria das vezes, nem há como verificar se tais pedidos procedem ou não. Outro aspecto importante é que um contrato de edição que se preze tem limite de cota para doação. Sobre o que ultrapassa a cota incidem direitos autorais, a não ser que o autor autorize expressamente a sua ampliação. Se a editora produz 20 títulos, pode até ser fácil obter as autorizações, mas numa com centenas ou milhares deles não é tão fácil. Suponhamos, todavia, que essa etapa foi superada e os milhares de autores concordaram. Ou que eles mesmos queiram os estoques, como vários da Cosac indicaram. Ou que surja uma infinidade de gente ou entidades implorando para lhes mandarem os livros. Aí aparecem os custos:
Voltando à Cosac Naify, é óbvio que, para chegar a essa alternativa, tentaram de tudo. Ou alguém em sã consciência acredita que eles se recusaram a vender o estoque para livrarias, distribuidores ou mesmo a saldo, ou então que não quiseram doar para quem ao menos bancasse o frete? “Você quer comprar?! Ah, não vendo, não vendo e não vendo! E você, quer doação e paga o custo de remessa? Que nada, prefiro mandar para aparas!”... É claro que não. Certamente ninguém quis comprar por não haver apelo comercial para os seus respectivos públicos-alvo, e não por falta de qualidade editorial. E, ainda que os saldos se interessem, restam os impostos a pagar – IRPJ (Imposto de Renda da Pessoa Jurídica) e CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Sem contar a apuração contábil que isso exigirá. É extremamente provável que uma venda a saldo não cubra as despesas, dado o que pagam por exemplar. Seria até recomendável fazê-la como forma de reduzir estoques numa editora em operação e que necessita momentaneamente de complementar o caixa em curto prazo, reduzir estoques e valores de armazenagem, não em uma editora que está fechada e não gera outros recursos.
É claro que, trazendo esse assunto à tona, e sabendo que muitos editores agem assim diariamente, mas não alardeiam, a Cosac imaginava que haveria comoção, especialmente pela aura que criou ao longo do seu tempo de atividade, e, talvez diante da divulgação do fato, quem negou interesse no passado venha a manifestá-lo agora. Faz parte do jogo e não há nada de condenável nisso, muito pelo contrário. É uma estratégia plenamente justificável para tentar salvar o que resta. De todo modo, resumindo a ópera, doar é bem mais complexo do que parece e está muito além da mera ação social. Doar livros é inegavelmente uma atitude nobre, todavia pode deixar um editor em dificuldades ainda mais pobre... Embora, às vezes não pareça, editor também é gente!
Henrique Farinha, economista pela FEA-USP, pós-graduado em administração e marketing pela FGV-SP e mestrado em marketing por concluir na PUC-SP, fez carreira no varejo e entrou no mercado editorial em 1996. Passou por grandes editoras como diretor editorial e diretor-geral. Atualmente, é presidente e publisher da Editora Évora, que publica os selos Évora e Generale. Em sua coluna, Farinha vai tratar de temas de gestão – e, de preferência, polêmicos - ligados ao mercado editorial. Finanças, marketing, aquisições, programas de governo, enfim, tudo aquilo que nos afeta e não há visão consensual, mas uma enorme vontade de analisar, opinar e abrir discussão.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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