
A poeta carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983) é a autora homenageada da 14ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa hoje, 29/06, na cidade colonial fluminense. Em sua homenagem, o PublishNews publica três poemas seus durante o período do evento. A iniciativa faz parte da campanha Espalhe Poesia, da Companhia das Letras. Aqui está o primeiro deles:
jornal íntimo
à Clara
30 de junho
Acho uma citação que me preocupa: “Não basta produzir contradições,
é preciso explicá-las”. De leve recito o poema até sabê-lo de cor.
Célia aparece e me encara com um muxoxo inexplicável.
29 de junho
Voltei a fazer anos. Leio para os convidados trechos do antigo
diário. Trocam olhares. Que bela alegriazinha adolescente, exclama
o diplomata. Me deitei no chão sem calças. Ouvi a palavra
dissipação nos gordos dentes de Célia.
27 de junho
Célia sonhou que eu a espancava até quebrar seus dentes. Passei
a tarde toda obnublada. Datilografei até sentir câimbras. Seriam
culpas suaves. Binder diz que o diário é um artifício, que não sou
sincera porque desejo secretamente que o leiam. Tomo banho
de lua.
27 de junho
Nossa primeira relação sexual. Estávamos sóbrios. O obscurecimento
me perseguiu outra vez. Não consegui fazer as reclamações
devidas. Me sinto em Marienbad junto dele. Perdi meu
pente. Recitei a propósito fantasias capilares, descabelos, pelos
subindo pelo pescoço. Quando Binder perguntou do banheiro
o que eu dizia respondi “Nada” funebremente.
26 de junho
Célia também deu de criticar meu estilo nas reuniões. Ambíguo
e sobrecarregado. Os excessos seriam gratuitos. Binder prefere a
hipótese da sedução. Os dois discutem como gatos enquanto
rumbas me sacolejam.
25 de junho
Quando acabei O jardim de caminhos que se bifurcam uma urticária
me atacou o corpo. Comemos pato no almoço. Binder me
afaga sempre no lugar errado.
27 de junho
O prurido só passou com a datilografia. Copiei trinta páginas de
Escola de mulheres no original sem errar. Célia irrompeu pela
sala batendo com a língua nos dentes. Célia é uma obsessiva.
28 de junho
Cantei e dancei na chuva. Tivemos uma briga. Binder se recusava
a alimentar os corvos. Voltou a mexericar o diário. Escreveu
algumas palavras. Recurso mofado e bolorento! Me chama de
vadia para baixo. Me levanto com dignidade, subo na pia, faço
um escândalo, entupo o ralo com fatias de goiabada.
30 de junho
Célia desceu as escadas de quatro. Insisti no despropósito do
ato. Comemos outra vez aquela ave no almoço. Fungo e suspiro
antes de deitar. Voltei ao
[A teus pés, Companhia das Letras, 144 pp., R$ 19,90; pp. 84 e 85]