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A literatura na URSS: três escritores, três destinos
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 10/02/2016
Em sua coluna dessa semana Roney fala sobre as recentes traduções no Brasil de livros que permitem realizar um percurso pela história da URSS entre os anos 1920 e 1950

Três edições recentes em português de escritores que escreviam em russo na União Soviética permitem realizar um percurso pela história da URSS entre os anos 1920 e 1950, por meio das edições permitidas e censuradas, da perseguição a originais e do contrabando de manuscritos escondidos. Foi um período no qual autores podiam ser, em questão de dias, alçados à glória suprema ou fuzilados por traição ideológica.

Contos de Kolimá (288 pp., R$ 49), de Varlam Chalámov (1907-82), da Editora 34, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich, primeiro de seis volumes de contos do autor, é uma série de textos autobiográficos que relatam episódios e personagens do cotidiano do Gulag soviético. O autor ficou preso cerca de 20 anos, a primeira vez em 1924 por divulgar uma carta de Lenin com críticas ao centralismo de Stálin.

Os contos de Kolimá, nome de uma prisão, foram escritos ao longo de 20 anos a partir de 1953, ainda durante o exílio que se sucedeu à prisão, conta no prefácio Irina P. Sirotínskaia. As primeiras publicações se deram em um jornal russo em Nova York a partir de 1966. A primeira edição russa se deu apenas após a morte do autor, em 1989, já no período da glasnost e da perestroika, e a série de completou em 1998.

Em vários dos contos, me lembrei de Primo Levi e É isto um homem?, pela crueza e objetividade da narrativa, a forma como situações banalmente desumanas e absurdas são narrados de forma direta. O impacto é acentuado por sabermos que os contos são autobiográficos e que muitos dos condenados, bolcheviques de primeira hora, eram denunciados por qualquer comentário que parecia suspeito. Entre muitas, a história do conto Terapia de choque, no qual o autor simula uma doença para escapar dos trabalhos forçados, é estarrecedora.

Outro escritor, Vassili Grossman (1905-64), conheceu a glória máxima de um escritor soviético sob Stálin, nos anos 1930/40, e o total ostracismo ainda em vida, nos anos 1950, mas nunca foi preso. Na coletânea A estrada (Alfaguara, 336 pp., R$ 54,90), é possível acompanhar três fases distintas desse escritor russo/soviético: o encantamento com a Revolução de 1917 (com um lindo conto, Na cidade de Berdítchev, sobre uma soldada bolchevique no front e seus dilemas pessoais e revolucionários duramente a gravidez e o nascimento do filho), o dia a dia da ocupação nazista do país (o impressionante conto O velho professor) e, por fim, o desencanto com o estalinismo. É ultra interessante ver a literatura em cada uma destas fases.

A edição em português, tradução de Irineu Franco Perpetuo, tem excelentes notas de rodapé e introduções escritas por Robert Chandler e Yury Bit-Yunan, que vão contando a história das publicações e edições dos contos e livros. Grosssman se voluntariou para o Exército Vermelho após o ataque nazista em junho de 1941, sendo designado para trabalhar no Estrela Vermelha. Tornou-se um dos mais populares correspondentes de guerra, pela coragem de ir ao front e por sua capacidade de falar de “verdade” do cotidiano da guerra.

O centro da produção de Grossman foi a Segunda Guerra Mundial. Seu diário de guerra, Um escritor na guerra. Vassili Grossman com o Exército Vermellho 1941-1945, é um testemunho das grandes batalhas e das “pequenas” histórias, heroísmos banais, deserções, vida dos civis, incluindo a violência em massa contra as mulheres alemãs quando o Exército Vermelho entrou na Alemanha. Certamente não era o que o regime soviético queria publicar em uma guerra na qual foram mortos mais de 20 milhões de soviéticos.

Junto com o escritor Ilia Ehrenburg (1891-1967) Grossman trabalhou para o Comitê Antifascista Judaico entre 1943 e 1946 na organização do Livro negro, monumental compilação de todo tipo de registro e informação sobre o Holocausto em território soviético. Pronto para edição em 1946, jamais foi publicado na URSS e seus fotolitos chegaram a ser destruídos. Era política oficial soviética falar apenas em “vítimas soviéticas”, sem aceitar a singularidade do Holocausto e escrever sobre outros grupos e etnias perseguidos e exterminados pelo nazismo.

Grossman e Ehrenburg, escritores judeus comunistas, membros ativos da oficial União dos Escritores, e engajados na luta anti-nazista e na defesa do regime de Moscou testemunharam e compreenderam, naquele momento, que o Holocausto era um crime singular em meio à devastação imposta a todos os soviéticos. Com originais contrabandeados para fora da URSS, a primeira edição do Livro negro em inglês foi em 1981, pelo Museu do Holocausto em Israel. Na Rússia saiu em 1993. Há uma edição em inglês, The complete black book of the russian jewry, de 2003, da Transaction.

Ainda durante a guerra, Grossman escreveu Por uma causa justa, romance sobre a batalha de Stalingrado. Apesar da popularidade do escritor, a publicação foi sucessivamente emendada, censurada e adiada. Stalingrado havia se tornado o grande mito da vitória soviética e do próprio Stálin, e Moscou queria máximo controle sobre livros a respeito. O livro só saiu em 1952. A recepção combinou elogios intensos e denúncias de distorção e traição. Grossman chegou a ser intimado a repudiar publicamente o próprio livro. A paranoia do regime atingira seu clímax naqueles anos, mas a morte de Stálin em 1953 salvou o livro, que teve várias edições.

Depois, Grossman se tornou um dos raros casos de escritores soviéticos que teve um livro apreendido sem ser preso. É o romance também sobre a batalha de Stalingrado, Vida e destino, de 1960. O governo baniu o livro e tentou confiscar todas as cópias. Em 1963, conta o tradutor Irineu Franco Perpetuo no prefácio da edição da Alfaguara (2014), agentes da KGB apreenderam o texto datilografado, os manuscritos, esboços, papel carbono e fitas de máquina de escrever. Deram batidas na casa da datilógrafa e escavaram a horta de um primo, que poderia ter escondido um exemplar.

Um ideólogo do partido chegou a dizer que o romance não deveria ser publicado nem nos “próximos 250 anos”. Prova maior de sua estatura literária. Grossman caiu em desgraça, viveu na penúria e seus livros foram banidos. Em carta a Nikita Kruschov, secretário geral do PC, escreveu: “Eu lhe peço que devolva a liberdade a meu livro (...) Não há sentido, não há verdade na minha situação atual, de liberdade física, se o livro ao qual dediquei minha vida está na prisão, pois não o reneguei e não o renegarei”.

Vida e destino sobreviveu em duas cópias escondidos e uma foi levada, em uma história cheia de peripécias e intermediários, para fora do país. O romance foi primeiro publicado na Suíça, em russo, em 1980, e em francês em 1983. Na URSS saiu em 1988, mais de 40 anos após ser escrito. Em 2013, o Arquivo Estatal Russo de Literatura e Arte obteve a cópia e outros materiais que haviam sido confiscados em 1946.

Por fim, a Editora 34 lançou um volume de contos inéditos em português, No Campo da honra (264 pp., R$ 46), de Isaac Bábel (1894-1940), autor também de O Exército de cavalaria. Traduzido por Nivaldo dos Santos, os contos formam um duro retrato da sociedade russa e soviética nos anos 1920 1 1930. Bábel foi preso em 1939 e fuzilado em 1940. Há contos que recuperam o cotidiano e o clima em pequenas aldeias e cidades do programa de coletivização.

O despertar é a comovente história de um menino judeu que recusa seguir o sonho do pai de torná-lo um grande violinista, como Jascha Heifetz. Bábel nos permite mergulhar em pequenas histórias e na intimidade dos diálogos das casas, compondo ao mesmo tempo grandes painéis do período. Celebrado na URSS nos anos 1930, ele seria publicado novamente apenas nos anos 1950.

Ler estes livros em 2016, Chálomov, Grossman, Bábel, em edições tão bem cuidadas em português – nunca deixando de louvar o projeto da Editora 34 com a literatura russa – é um privilégio que evoca também a história de escritores e livros que estiveram no centro da literatura e dos acontecimentos políticos do século 20, a Revolução Russa, os anos (1920) de construção de esperança socialista e do Estado soviético, o estalinismo e a repressão a partir de 1934, a Segunda Guerra Mundial, a luta anti-nazista, a Guerra Fria, a morte de Stálin, o degelo político, e incríveis histórias de manuscritos perseguidos e contrabandeados pelas fronteiras.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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