O mundo editorial não depende só de si
PublishNews, 03/08/2011
O mundo editorial não depende só de si

No último dia 24 de julho, iniciou-se uma grande mudança no mercado de e-book. Teve seu primeiro impacto na Kobo, mas não tem nada a ver com a Borders.

A Kobo distribuiu uma nova app para o iOS (que é o sistema operacional da Apple para iPad e iPhone) que não contém mais o link direto para sua loja dentro do programa. Isso significa que comprar novos livros na Kobo exige que o usuário vá até Kobo.com através do browser (não é nada difícil, mas significa alguns passos a mais) em vez de acessá-la por um toque dentro da app.

Outras notícias nessa história ainda em andamento é que a app do Google foi “tirada” e que a app do Nook for Children não tem mais o link para a loja. Devemos esperar que as apps da Kindle e da Nook para adultos passem pela mesma mudança no futuro próximo [neste momento que o artigo está sendo publicado em português, Kindle e Nook já lançaram suas atualizações de app, sem o link direto para compra]. Isso quer dizer que a forma mais simples e direta de comprar e ler e-books no iPad ou no iPhone será através da iBookstore. Significará, certamente, um crescimento no market share da iBookstore à custa de todas as outras lojas de e-book. Também vai significar que muita gente que lê seus e-books num aparelho com iOS (sou um deles) e prefere usar qualquer uma das outras lojas (e também sou um desses) terá inconveniências e ficará aborrecido.

No entanto, também é verdade que a Apple vai se beneficiar desta mudança mesmo que muitos clientes fiquem ressentidos.

A questão mais enfática de tudo isso é que o mercado de livros é uma rolha flutuando numa correnteza de aparelhos digitais. Não controlamos nosso ambiente. Devemos continuar nos adaptando às decisões dos maiores players, alguns dos quais têm pouca disposição para dialogar e mínimos interesses no que é melhor do nosso ponto de vista, só se importando com a melhor estratégia para eles.

Sou culpado por manter uma visão centrada nas editoras em relação à possibilidade de que a Apple realmente forçasse a regra que levou a todas essas mudanças. Algo que começou a aparecer, como rumor, em fevereiro. Quer dizer: com esperança, quando ouvi pela primeira vez sobre essa possibilidade há seis meses, pensei que não aconteceria. Quis acreditar que como a Apple tinha se beneficiado substancialmente da presença das apps de e-books na sua plataforma, e como há milhões de pessoas que leem e-books em seus aparelhos Apple, mas preferem outros readers [apps] e outras eBookstores, que a Apple não forçaria essas regras que dizem que essas apps e livrarias estavam operando fora das normas.

Vou tentar não voltar a cometer esse erro. Uma das outras grandes empresas recentemente me elogiou pela facilidade com que aceitei a ideia de que empresas (e pessoas) agem em interesse próprio. Foi o que a Apple fez aqui.

O que isso significa depende da sua posição.

A Barnes&Noble (Nook), Google e Kobo se beneficiaram enormemente da chegada da Apple em abril de 2010 porque trouxe consigo o modelo de venda de “agência” que equilibrava os preços em todas as lojas para os e-books publicados pelas grandes editoras. Sem agência, muitos acreditam (e eu sou um deles) que as políticas agressivas de dumping do Kindle da Amazon em relação aos livros mais importantes teria diminuído seriamente a competitividade.

A B&N precisa de todo centavo que conseguir economizar, para investir no desenvolvimento do aparelho e no marketing; eles ficariam numa posição bem ruim se tivessem de abrir mão de margem de lucro para competir por consumidores.

A Google conseguiu fechar um acordo com umas 300 lojas independentes nos EUA para serem parceiras em seu programa de e-books. Poderiam não ter nem 10% disso se as independentes achassem que teriam de competir com o dumping de preços nos best-sellers. Quando a Random House aderiu ao modelo de agência no começo de março do ano passado – 11 meses depois que começou – uma das razões dadas foi responder ao desejo de lojas independentes em vender e-books, o que só seria possível se fosse pelo modelo de agência.

A Kobo sempre teve uma estratégia global que poderia permitir que crescessem mesmo se tivessem problemas no mercado norte-americano. Mas eles estavam tentando competir com os preços da Amazon nos tempos pré-agência e como o menor dos grandes players de e-books globais, eles teriam de ser considerados como os mais vulneráveis num ambiente caracterizado pela guerra de preços.

Essa mudança deve significar uma perda de vendas para todos eles. É difícil ver como poderia ser diferente.

A Amazon vai perder vendas também, mas eles podem ganhar no geral só porque a vida também vai ficar um pouco mais complicada para B&N, Kobo e Google.

Todas essas livrarias ganharam muito (mas não revelam seus dados) com o grande sucesso dos iPads e iPhones, além da capacidade de acesso, de forma direta e sem custo, a partir desses aparelhos. É claro que a Amazon e a Barnes&Noble venderam muitos Kindles e Nooks, claro (o aparelho da Kobo também está competindo e logo a Google vai lançar o seu), e estariam vendendo muitos e-books mesmo se os aparelhos da Apple não existissem. As editoras sabem que, entre 55-65% das vendas de e-books vêm da Amazon e 20-30% de seus e-books são vendidos pela Barnes&Noble; algumas dessas vendas são lidas em aparelhos dedicados e a maioria do resto em aparelhos com iOS. Mas eles não têm ideia de qual é seja a porcentagem. Agora vão começar a descobrir quando as vendas de outras livrarias passarem a vir da iBookstore. (Vendas da iBookstore, Kobo, Google e outras constituem entre 15-20% do total, às vezes até bem menos).

De todas as formas, o evidente benefício que a Apple e os aparelhos com iOS costumavam representar às livrarias agora fica reduzido em valor, mas o modelo de agência continua (para alegria de todos, menos da Amazon), assim como a capacidade de seus clientes usarem iPads e iPhones para consumir seu conteúdo.

Algumas editoras vão ter de reconsiderar suas estratégias.

Como a Amazon só vai aceitar contratos com os termos de agência com as Seis Grandes (eles têm formas de oferecer 70% de participação nas vendas, mas não abrem mão de ter o controle dos preços), como algumas editoras não gostam do modelo de agência e como a iBookstore não tem sido muito agressiva em termos de conteúdo como seus competidores (não tenho certeza sobre isso, mas parece que todos os outros players possuem equipes muito maiores buscando conteúdo do que a iBookstore), há editoras vendendo para as outras livrarias e não para a Apple. Eu imaginaria que elas poderiam estar esperando uma súbita queda de vendas através do iOS, apesar de não saberem exatamente a divisão de mercado.

E isso aponta para uma grande diferença entre as editoras e as livrarias. As livrarias sabem quanto de suas vendas são feitas pelas diferentes apps dos clientes. Eles também sabem quantos e-books estão sendo lidos em aparelhos com iOS. As editoras não têm ideia. No longo prazo, isso mostra como as editoras podem se beneficiar se novos players entrarem no mercado – Anobii no Reino Unido (que nos contou que vão repassar os dados para as editoras) e a Bookish nos EUA (que ouvimos, de forma indireta, que vão fazer o mesmo) – e conseguirem algum market share de maneira que possam fornecer visibilidade sobre o consumo, que as editoras não possuem agora.

E isso me leva de volta à metáfora sobre a rolha numa correnteza de aparelhos digitais. Não havia mercado de e-books sério antes de a Amazon lançar o Kindle, se dedicar realmente a vendê-lo, e usar a capacidade que tinham então para sacrificar margem de lucro e criar uma proposta comercial forte que foi a catalisadora para criação do mercado. Não havia competição séria para a Amazon até a nova diretoria da Barnes&Noble lançar o Nook com um compromisso forte de fazê-lo conhecido, usando sua presença em lojas físicas para apresentar os e-books a novos públicos e, com aparelhos mais inovadores, contribuindo para o explosivo crescimento da leitura em formatos digitais.

Não havia restrição na capacidade da Amazon de usar seu poder financeiro para dar descontos no conteúdo das editoras a fim de conseguir crescer no mercado até que o novo aparelho da Apple, o iPad, criou novos modelos de vendas que forçaram a estabilidade do preço e, ao mesmo tempo, deram às editoras uma nova capacidade de maximizar a renda e usar o preço como ferramenta de marketing.

Não havia forma eficiente de apresentar aos leitores de livros a conveniência da leitura digital sem o investimento num aparelho dedicado até que o iPad colocou essa capacidade em milhões de mãos que nem sabiam que queriam aquilo.

Não havia grande motivação para as lojas de e-book apresentarem interoperabilidade entre os aparelhos até muitos donos de aparelhos também se tornarem donos de iPhone e iPad.

Notamos que todas essas mudanças no mercado foram criadas por outros, não pelas editoras. Isso não é necessariamente uma coisa ruim, tampouco nova. As editoras também não participaram no investimento que criou as megastores e nem na Amazon nos anos 90, coisas que aumentaram suas vendas. O papel de uma editora é usar os canais que estão disponíveis para colocar livros nas mãos dos leitores.

Dentro da perspectiva da maioria das editoras, essa mudança poderia ter pouco impacto. Qualquer leitor que usa iPad ou iPhone e quer um livro, ainda pode encontra-lo e compra-lo. Se a loja da Apple se fortalecer à custa do Kindle e do Nook, isso constitui uma diversificação de mercado que é boa para eles (se o impacto cair de maneira desproporcional sobre o Nook, no entanto, isso será ruim.)

Mas a simbiose feliz entre eBookstores e a Apple, pela qual as primeiras têm acesso aos clientes que, de outra forma, não teriam, e a Apple é capaz de entregar a seus clientes o conteúdo que não teria em outras circunstâncias, parece ter chegado a um fim. E a iBookstore, que estava brigando por migalhas depois que a Amazon tomou metade do mercado de e-books dos EUA e a B&N mais da metade do restante, está a ponto de se tornar um competidor mais importante.

[02/08/2011 21:00:00]