Não se afogue cruzando o rio
PublishNews, 17/11/2010
Cuidado com os números dos e-books

Um aforismo que eu vi anos atrás e que sempre me lembro na minha vida profissional é que um "homem de 1,82 m se afoga cruzando um rio que tem em média 90 cm de profundidade".

A questão é que conjuntos e médias podem mascarar importantes verdades.

Pensei nisso quando li o estudo da Forrester, anunciado no começo dessa semana, sobre o crescimento dos e-books. Nota: A Forrester é parceira dos meus colegas na Digital Book World e vai apresentar dados – não sobre esse estudo de e-books, mas sobre outro projeto – na conferência da DBW em janeiro. Não me envolvi nessas discussões e, como a maioria dos leitores desse blog, só conheço o que li nas publicações e comentários.

Kat Meyer, no O’Reilly Radar, expressou suas dúvidas quanto os dados da Forrester, e quanto aos dados recém-anunciados pela Bain Consultants, na França. As preocupações de Kat têm a ver com a metodologia. Não sei se estamos aptos para avaliar a metodologia porque não sei quanto disso foi revelado, e eu diria que a questão que ela levanta é importante, mas não é o que realmente me preocupa.

(Minhas primeiras avaliações sobre os números em destaque no estudo são: 1) Então chegamos a US$ 1 bilhão em vendas de e-books neste momento? Se for só de livros trade – e há alguns fatos enumerados abaixo que mostram que poderia não ser apenas livros deste segmento – então o valor em questão seria uma fração de US$ 15 bilhões, o que parece algo razoável. Mas se neste US$ 1 bilhão estão incluídos outros tipos de livros, que não de trade, cujo faturamento total é US$ 30 bilhões, então esse valor choca por ser baixo, não alto. 2) A previsão de crescimento para US$ 3 bilhões até 2015 nesses dois casos parece muito conservadora, e a redução na taxa de crescimento nos próximos cinco anos, em comparação com o que foi nos últimos dois anos, é a grande questão. Acho que nenhum relato sobre este estudo colocou a coisa dessa forma. Como sou uma voz única nesta análise, fico imaginando se algo não passou despercebido para mim ou que eu não tenha todas as informações necessárias para tecer um comentário. É por isso que este parágrafo está entre parêntesis. Fico mais tranquilo.)

A apresentação da Forrester de um estudo de caso da indústria editorial é uma das muitas baseadas em pesquisas sérias que estamos planejando para a conferência DBW. No ano passado, apresentamos pesquisas da Verso Media sobre o público leitor, mostrando sua passagem do impresso para o eletrônico. Guy Gonzalez e sua equipe da Digital Book World assumiram esse estudo e irão atualizá-lo com a Verso. Ainda em 2009, também tivemos uma apresentação da Bowker e BISG, que estavam apenas começando o estudo sobre os leitores de e-books. Eles realizaram quatro pesquisas de campo desde então e vão apresentar relatórios atualizados.

Nos dois casos, com a metodologia dos estudos permanecendo consistente, teremos importantes informações sobre a indústria, independente da precisão das porcentagens informadas para os diferentes comportamentos.

Tivemos a oportunidade de realizar um outro estudo quando o pessoal do iModerate, que possui uma metodologia de "chat" online para personalizar pesquisas, se voluntariou para apresentar seu trabalho para o nosso público. Precisávamos escolher o tópico e decidimos estudar os hábitos de e-reading em aparelhos portáteis multifunção (smartphones e tablets). Escolhemos esse tópico por duas razões: (1) é um grupo de e-book readers com forte crescimento e (2) as telas touchscreen coloridas e a conectividade dos aparelhos permitem que enhanced books, que não funcionariam bem no Kindle ou Nook de primeira geração, sejam completamente acessíveis.

Vamos também apresentar o trabalho que a Bowker fez no mercado de livros infantis e que contou com o apoio de várias editoras e foi organizado junto com a Association of Booksellers for Children.

As manchetes na mídia relacionadas ao relatório da Forrester foram de que as vendas de e-books estão se aproximando do $1 bilhão de dólares e que esperam que esse número triplique em cinco anos. Também chama a atenção o fato de que, três anos na era do Kindle e mais de seis meses depois da introdução do iPad, mais e-books são lidos em computadores pessoais do que em qualquer outro meio. Eu digo que chama a atenção pois vai direto ao coração da minha preocupação sobre os dados. Tem a ver com o homem de 1,82 m.

Tenho a forte impressão de que o conteúdo lido no PC é qualitativamente diferente do que é lido em aparelhos portáteis e celulares. Entendo os perigos de generalizações a partir da experiência de uma única pessoa, mas eu nunca conheci alguém que lesse livros de literatura em um PC. Conheço pessoas que leem em Kindles, Nooks, smartphones e iPads. Sei, por ter conversado com pessoas na indústria de e-books de romance, que pessoas nos escritórios leem romances nas máquinas dos escritórios (na hora do almoço, claro).

Mas minha intuição afirma que uma boa parte da leitura em PC é profissional e informativa, não recreativa, e é nisso que consiste a maior parte das vendas de PDFs. Se mais de 30% dos leitores de e-books consomem conteúdo em computadores comuns, aposto que as porcentagens desta forma de leitura para a loja virtual Safari, da O’Reilly, são muito mais altas (a dúvida se a leitura de um trecho de e-book é contada na pesquisa é uma boa questão metodológica, mas minha intuição ao interpretar os dados é que deve estar sendo contada sim).

Portanto, a leitura de e-books é um rio que possui uma média de 90 cm de profundidade. Mas só tem uns 30 ou 60 centímetros perto da margem (onde os livros de literatura são lidos) e tem uns 5 metros de profundidade no meio (onde os e-books profissionais são lidos). E o ponto importante é que os editores que fazem um ou outro não ganham nada com dados que juntam esses dois mercados bastante diferentes, colocando-os como se fossem uma coisa só.

Isso não quer dizer que a pesquisa da Forrester não tenha nada a nos ensinar nem que algum outro estudo tenha uma abordagem mais rígida em relação a esta questão. Perguntei a um colega que é fã de estatísticas e que já fez vários trabalhos nesse setor se ele compartilhava minha impressão sobre quem são os leitores desses PDFs nos PCs. Ele pesquisou seus arquivos e acabou concordando que a análise de mercado que eu queria não era clara na extensiva pesquisa que ele havia feito.

Obviamente, há pessoas que sabem disso. A Amazon, a B&N e a Kobo sabem em quais aparelhos os livros que vendem são lidos. O'Reilly sabe em quais aparelhos os livros que vendem ou que são usados em sua biblioteca Safari são lidos. Quando eu entrevistei a editora da Ellora's Cave, na Digital Book World do ano passado, ela estava bastante consciente do fato de que muitos de seus livros ainda eram vendidos como PDF, sugerindo um leitor em computadores. O fato de que esses dados não estejam facilmente disponíveis ou analisados sugere que aqueles que os possuem atribuem um valor proprietário aos mesmos.

Tentar entender um filão do mercado que poderia ter características próprias era o nosso objetivo quando decidimos usar a iModerate para estudar os aparelhos portáteis multifunção. Pensamos que esses e-readers poderiam usar e valorizar os recursos de um enriched e-book mais do que o Kindle e o Nook. Além disso, vemos este segmento do mercado de e-readers como aquele com a maior probabilidade de crescimento rápido. Portanto, acreditamos que compreender esse segmento de mercado com mais detalhes poderá ajudar as editoras a entenderem melhor o seu alvo no desenvolvimento de produtos.

Já dissemos muitas vezes que o negócio do livro não é um negócio só. Os e-books profissionais lidos em um laptop por um programador no meio de uma tarefa não falam muito sobre que formato você deveria escolher para publicar um romance. A grande mudança no mundo do e-book que ainda não aconteceu, mas vai acontecer nos próximos anos, é uma maior adaptação e consumo de livros ilustrados em formato digital. Atualmente, qualquer coisa ricamente ilustrada provavelmente terá de ser distribuída como PDF para um laptop. Mas isso não será mais verdade no final do período enfocado no estudo, por volta de 2015.

No dia em que estou escrevendo isso, novos dados de vendas de e-books foram anunciados e a Cader os analisou num post que está dentro do conteúdo pago. Ele calculou que as vendas de e-books compreendem a 9,5% das vendas de livros adultos, mas somente 1,7% dos infantis. Isso é realmente uma cartografia do fundo do rio, bastante útil.

No final, o que queremos são dados e temos de entender suas limitações ao mesmo tempo em que os utilizamos para entender a realidade. Também não podemos esquecer que o universo das mudanças digitais na indústria editorial é simultaneamente dinâmico e diverso, e que nenhum único grupo de dados será capaz de nos dar respostas sobre qual deve ser nosso próximo passo nem sobre o que devemos esperar nos próximos anos.

É precisamente porque os dados precisam ser interpretados que realizamos as sessões Verso-DBW, BISG-Bowker e iModerate na Digital Book World, terminamos as apresentações com um painel de discussão cujo objetivo é jogar alguma luz sobre o que pode ser concluído em relação àquilo que os dados dizem.

[16/11/2010 22:00:00]