Indefinições sobre o novo edital do Prêmio Sesc de Literatura causam impasse público e questionamentos
PublishNews, Guilherme Sobota, 06/03/2024
Grupo Editorial Record vai a público questionar decisões do Sesc sobre a distinção, uma das mais importantes da literatura brasileira; Henrique Rodrigues foi demitido da instituição

Leitura na Flip 2023 teria incomodado diretoria do Sesc Nacional | © Sara de Santis / Flip / 2023
Leitura na Flip 2023 teria incomodado diretoria do Sesc Nacional | © Sara de Santis / Flip / 2023
Indefinições sobre o novo edital do Prêmio Sesc de Literatura causaram um impasse público entre a instituição, o Grupo Editorial Record – parceiro do Prêmio – e profissionais envolvidos na situação, como o criador intelectual do Prêmio Sesc e ex-analista de literatura, Henrique Rodrigues, e os escritores vencedores em 2023. Acusações de tentativa de censura e até de homofobia motivam as discussões.

Nesta terça-feira (5), o Grupo Record enviou ao PublishNews uma nota demonstrando "extremo incômodo" com alguns aspectos da edição 2024 do Prêmio. Entre eles, lamentava a passividade do Sesc frente ao rumor – que corre já há algumas semanas – da criação de uma instância de avaliação interna dos livros posterior à avaliação dos jurados. "O Sesc não negou, de maneira cabal e pública, esta hipótese, que acreditamos que funcionaria como um filtro extraliterário e prejudicaria a lisura e liberdade de avaliação do júri", diz a nota.

A reportagem questionou o Sesc sobre esse ponto em específico, e, em comunicado via assessoria de imprensa, a instituição disse que "o Prêmio Sesc de Literatura sempre se pautou pela imparcialidade, com decisão soberana de suas comissões julgadoras, formadas por escritores renomados, que selecionam as obras pelo critério da qualidade literária".

A Record ainda manifestou preocupação com a demissão de dois funcionários do Sesc responsáveis diretos pelo prêmio e pela interlocução entre o Sesc e a editora, entre eles o criador intelectual do prêmio, o escritor Henrique Rodrigues, "sem qualquer comunicação prévia ou consulta à editora".

Segundo a casa, a não publicação do edital do prêmio 2024 até o momento compromete os prazos de avaliação, de anúncio dos vencedores e, posteriormente, de edição dos livros premiados. Outra preocupação é "os adiamentos sucessivos (de novembro de 2023 até agora) do acesso da Record ao teor tanto do novo edital do prêmio, que o Sesc nos disse que produziria, quanto da renovação do convênio com a editora".

O Sesc garante que a edição 2024 do Prêmio Sesc de Literatura está mantida e em breve serão abertas as inscrições, nas categorias Conto, Romance e da nova modalidade, Poesia. "O lançamento do edital, que ocorre normalmente no mês de janeiro, precisou ser adiado em virtude de uma revisão no regulamento do concurso, que tem por objetivo ampliá-lo e torná-lo mais próximo ao atual cenário da literatura nacional", diz a nota.

Problemas com os livros vencedores de 2023

A editora também questionou o fato de a direção do Sesc ter enviado a seus núcleos regionais uma circular alertando sobre "conteúdo sensível" no livro Outuno de carne estranha, de Airton Souza – um dos livros vencedores do Prêmio em 2023 e publicado pela Record. Segundo a nota, a circular ainda dizia que o livro poderia "ativar gatilhos emocionais e psíquicos" e que deveria haver trabalho específico de mediação.

O livro trata de um romance homoafetivo no contexto do garimpo em Serra Pelada.

O Sesc afirma que indicações de censura sobre o livro não têm qualquer fundamento. "No caso de Outono de carne estranha, foi feita uma orientação aos Departamentos Regionais do Sesc que apresentassem classificação indicativa, mecanismo de garantia do respeito ao direito à prevenção especial de crianças e adolescentes, quando houvesse evento de leitura, cafés literários, bate-papos, rodas de conversa ou similar", garante.

Bethânia Pires Amaro e Airton Souza, vencedores do Prêmio Sesc de Literatura 2023 | © Sesc
Bethânia Pires Amaro e Airton Souza, vencedores do Prêmio Sesc de Literatura 2023 | © Sesc
A Record também trouxe a público o atraso nas viagens do Circuito de Vencedores, tradição e parte importante do Prêmio.

"Em relação ao Circuito dos Vencedores, com a participação dos autores premiados na edição de 2023 – Airton Souza e Bethania Pires Amaro – informamos que será realizado", diz a nota do Sesc. "A postergação do início da circulação ocorre em virtude das mudanças no Prêmio Sesc de Literatura, que exige dedicação completa da equipe de Literatura do Departamento Nacional do Sesc. Além disso, há o fato de a autora premiada estar em puerpério, o que está sendo respeitado pela instituição".

Ao Estadão, Bethânia disse que comunicou ao Sesc a situação e que não poderia comparecer a todos os eventos, mas pediu para “não ser prejudicada por esta condição” e para “ter a oportunidade de receber o calendário e escolher os eventos”.

Em uma postagem nas suas redes sociais, o autor Airton Souza agradeceu o apoio de leitores e colegas. "Que dia. É uma das primeiras vezes que eu não sei o que dizer. Tudo é tão inexplicável. Tão criminoso. Tão rodeado de uma falsa moral, que me deixou sem saber o que dizer. Homofobia, censura e assedio moral. Um livro tão bonito sofrendo uma perseguição forte", escreveu.

Por conta dos questionamentos, a Record levou a questão a público para que eventuais mudanças no edital sejam revistas pelo Sesc. "Tantos elementos nos fazem temer pelo importante papel que o Prêmio Sesc desempenha na cena literária brasileira", conclui a nota da editora. "O Grupo Editorial Record acredita que o compromisso com a liberdade de expressão e de criação é parte inseparável da atividade editorial, e em nome desses valores tem a obrigação de se manifestar, em defesa da lisura e da transparência que sempre caracterizaram o Prêmio Sesc, e também em defesa de seus autores, que estão sendo prejudicados. Consideramos de suma importância que os fatos acima listados sejam levados em conta, e que as eventuais modificações no edital do prêmio sejam revistas pelo Sesc. O sucesso do prêmio de literatura ao longo dos últimos vinte anos é o maior argumento para que nada mude nas regras de inscrição e avaliação".

Repercussão

Diversos escritores e profissionais do mercado editorial vieram a público manifestar suas opiniões sobre o caso, depois que o Estadão publicou uma reportagem no fim da tarde de quinta-feira (5).

"Como jurado que premiou o livro do Airton Souza, manifesto solidariedade aos autores e ao Henrique Rodrigues, que cuidou do Prêmio Sesc desde a sua criação. A onda de conservadorismo é destruidora e tem de ser combatida", escreveu Joca Reiners Terron no X.

"Onde isso vai parar?", questionou Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele (Companhia das Letras), que vem enfrentando tentativas de censura por parte de setores de governos estaduais no sul do Brasil. "Que situação terrível", comentou a escritora e pesquisadora Amara Moira.

"O Prêmio Sesc, de excelentes serviços prestados à literatura, vai a pique na onda estúpida de censura e obscurantismo em que surfa a direita brasileira", escreveu Sérgio Rodrigues.

Demissão de Henrique Rodrigues

No início de 2024, o escritor e então analista de literatura do Departamento Nacional do Sesc, Henrique Rodrigues, foi demitido pela instituição. Rodrigues atribui o fato a um episódio que aconteceu na Flip, em novembro de 2023 – a leitura de um trecho do romance de Airton Souza teria causado celeuma entre diretores do Sesc.

Henrique Rodrigues | © Arquivo pessoal
Henrique Rodrigues | © Arquivo pessoal
"O Departamento Nacional tem uma gestão nova, que não conhece nem entende muito dos conteúdos de Cultura", diz agora o escritor ao PublishNews. "Daí a reação dos diretores na Flip ter gerado uma prática comum em alguns (Núcleos) Regionais. Em vez de se educarem, demitem a pessoa responsável. Fui acusado de ter causado constrangimento nas chefias, e que por estar na mediação da mesa deveria ter evitado a leitura do Airton a qualquer custo. Como já havia dito outras vezes, respondi me negando a ser a mão de censores, e que podiam me demitir. Tenho uma trajetória dentro e fora do Sesc na promoção da literatura e da liberdade criativa", explica.

Sobre o caso, a instituição afirmou que "o Prêmio Sesc de Literatura é gerido por uma equipe de profissionais da área de Literatura do Departamento Nacional do Sesc, que atuam em parceria com outras áreas de forma a promover o projeto nacionalmente, não existindo nenhum prejuízo à iniciativa em virtude do desligamento de quaisquer colaboradores da Instituição. O Sesc se reserva no direito de selecionar e manter em seus quadros funcionários que atuem em sintonia com a filosofia e cultura da Instituição".

O Prêmio Sesc de Literatura

Lançado pelo Departamento Nacional do Sesc em 2003, o concurso identifica escritores inéditos, "cujas obras possuam qualidade literária para edição e circulação nacional". Além de inclui-los em programações literárias do Sesc, o Prêmio também prevê a publicação dos livros vencedores pela editora Record.

Entre os vencedores anteriores do Prêmio, estão nomes como Rafael Gallo, Luisa Geisler, Marcos Peres, Tobias Carvalho, Juliana Leite, Sheyla Smanioto, Sérgio Tavares e André de Leones.

[06/03/2024 08:20:00]