Memórias afetivas
PublishNews, Redação, 09/01/2023
Estreia literária de Michelle Zauner reconstrói a dimensão afetiva dos pequenos atos cotidianos, e supre a distância entre o paladar brasileiro e o coreano ao aguçar a curiosidade de conhecer esses sabores

Não é preciso conhecer nada de gastronomia para saber que a comida é uma das bases da educação sentimental. Os ingredientes, os modos de preparo, a combinação de aromas, cores e sabores com as quais aprendemos a nos familiarizar compõem o repertório íntimo de cada um de nós. E é justamente esse poder de mobilizar o afeto que é evocado desde o primeiro parágrafo de Aos prantos no mercado (Fósforo, 288 pp, R$ 69,90 - Trad.: Ana Ban). Nele, o leitor vê a protagonista, que atravessa o luto pela morte precoce da mãe, liberando o pranto represado ao percorrer as prateleiras do mercado coreano H Mart em Nova York. Originalmente publicadas na revista The New Yorker com o mesmo título, essas páginas tiveram sucesso e acabaram se tornando o capítulo de abertura do primeiro livro da cantora de rock independente Michelle Zauner, um best-seller do New York Times que também entrou para a lista de melhores de 2021 do presidente Barack Obama. Enquanto a saudade da mãe coloca em perspectiva as antigas rebeliões da adolescência e atenua o rigor do julgamento das escolhas feitas pelos pais, a comida representa uma espécie de tábua de salvação na qual Zauner navega os descaminhos dos últimos e dolorosos momentos da mãe. Nessas memórias, a autora relembra a culinária afetiva a fim de não se perder de si ao atravessar o luto. Entre os expedientes da vida adulta, a protagonista descobre que o luto, a festa e a criação artística podem conviver intimamente na difícil tarefa de encontrar um lugar no mundo. O livro também pondera consensos e dissensos reconstruídos à luz da experiência limite do luto, ressignificando os traumas da infância e convocando a uma nova responsabilidade sobre as escolhas da vida adulta.

[09/01/2023 07:00:00]