Depois de quase 100 anos, cidade de Cora Coralina ganha livraria
PublishNews, Leonardo Neto, 08/01/2019
À frente da Leodegária, livraria que homenageia poeta que Cora considerava ‘gente maior’, estão as professoras Goiandira Ortiz (na foto), Ebe Maria de Lima Siqueira e Edina Ázara

Professora Goiandira Ortiz é uma das sócias da Leodegária | © Leonardo Neto
Professora Goiandira Ortiz é uma das sócias da Leodegária | © Leonardo Neto
Na Cidade de Goiás, não há quem não conheça o Sobrado dos Vieira. O casarão, que compõe o conjunto arquitetônico desde 2001 tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, era no início do século XX palco da efervescência cultural da Vila Boa, como a cidade era conhecida na época. Ali, se reunia o Clube Literário Goiano e foi depois de uma das reuniões da agremiação que Cora escreveu o poema O Passado. Nele, a poeta refere-se a si mesma como “gente menor” ao se comparar com a sua contemporânea Leodegária de Jesus. Negra e 12 dias mais velha que Cora, Leodegária de Jesus era precoce. Publicou seu primeiro livro – Corôa de lyrios – em 1906, aos 17 anos (Cora só publicaria seu primeiro livro 54 anos depois). À frente do seu tempo, fundou o Rosas, jornal feito exclusivamente por mulheres.

Leodegária foi o nome escolhido pelas professoras Goiandira Ortiz, Ebe Maria de Lima Siqueira e Edina Ázara para batizar a primeira livraria da cidade desde a década de 1920. “Leodegária de Jesus é uma figura do seu tempo. Numa sociedade machista e conservadora, ela esteve ali no meio de poetas homens. Às vezes, fico imaginando como é que ela conseguiu abrir espaço para essa voz e fazendo parte da turma dos grandes como a Cora falava. É algo que nos instiga muito. Como foi a sua relação com esses homens, com essa elite, sendo negra, mulher, como ela conquistou esses espaços? E achamos que seria bacana homenageá-la. Seria bom e justo”, explicou Goiandira em uma longa conversa que teve com o PublishNews no fim de dezembro.

Instalada desde agosto passado em uma pequena sala no recém-restaurado Mercado Municipal de Goiás, a Leodegária guarda um acervo de cerca de 600 títulos, entre eles, preciosidades como uma edição fac-similar de Corôa de lyrios (Cânone), organizado pela também professora e poeta Darcy França Denófrio; edições dos livros de Cora Coralina, muito procurados pelos turistas que visitam o Mercado; raridades como À cidade, escrito e editado de forma independente por Mailson Furtado, eleito livro do ano pela última edição do Prêmio Jabuti, além de livros de interesse geral e os adotados pelas três instituições de ensino superior da cidade: as universidades Federal e Estadual de Goiás e o Instituto Federal de Goiás.

“Fomos escutando as demandas e nossos clientes estão fazendo nosso acervo. Temos uma demanda boa por livros sobre relação de gênero, questões étnicas e sobre mulheres. Isso vem das universidades. As instituições estão fazendo um bem enorme à cidade. Há um conservadorismo resistente em Goiás e as universidades têm oxigenado a cidade, mudando a face e os costumes. E todas essas questões são trazidas para a livraria”, comentou Goiandira.

Os livros chegam ali, na sua maioria, via distribuidores ou em parceria com a livraria Palavrear, de Goiânia. Há ainda compras feitas diretamente com as editoras e com os autores, como foi o caso do livro vencedor do Prêmio Jabuti.

A consignação, que na avaliação da livreira poderia ajuda a vida da Leodegária, ainda é coisa rara na sua realidade. “Conseguimos consignar livros de editoras de Goiânia, como é o caso da Nega Lilu, da Cânone e da Editora da Universidade Federal de Goiás; ou de editoras independentes como a Lote 42, de São Paulo. No começo foi ainda mais difícil, era em dinheiro, à vista. Agora já conseguimos um prazo um pouco maior, mas consignação mesmo é difícil”, explicou. Outra exceção são os livros da Companhia das Letras que chegam à cidade de Cora Coralina consignados via Palavrear.

Não é hobby

Goiandira comentou nessa conversa que teve com o PublishNews que a última livraria (que funcionava era uma editora) de que se tem notícia na cidade funcionou na década de 1920. De lá para cá, quem precisava comprar um livro tinha que ir à Goiânia – a 130 km dali – ou, mais recentemente, encomendar via internet. As demandas dos alunos universitários, quando não supridas por arquivos de PDF, recaem na velha cópia. “O acesso ao livro e a compra ao livro é pequena aqui em Goiás. Mesmo assim, nós sentimos a necessidade de montar uma livraria e poder vender esses livros. É uma forma de contribuir com a cidade; de transformar não só numa livraria, mas também num ponto de encontro, com debates, palestras, lançamentos de livros. Não é um hobby. É um trabalho sério que a gente tem todo o cuidado. Estamos gerando emprego e movimentando a economia da cidade. Estamos lutando para que a livraria dê certo e tem dado certo. Temos atendido as pessoas da cidade”.

O acesso dificultado fez criar na cidade uma confusão lexical curiosa. “Acostumadas com essa ausência, as pessoas muitas vezes chamam a livraria de biblioteca, já que a ideia de onde se tem livros é uma biblioteca e não uma livraria”, comentou.

Ressurgimento de Leodegária de Jesus

Goiandira lembra que o nascimento da Leodegária, a livraria, faz parte de um movimento de resgate de Leodegária, a poeta. “Ela está ressurgindo aqui em Goiás”, comentou na conversa que teve com o PN. O nome de Leodegária batiza um pavilhão na prefeitura de Goiás e há articulações para que se crie, em Caldas Novas, também no interior goiano, um museu que vai homenagear Leodegária, que morreu em 1979, seis anos antes de Cora.

[08/01/2019 09:30:00]