“Você tem mais brasilidade do que eu”. Com essa frase, Roberto Parmeggiani, escritor italiano que abriu a quinta edição da Fliaraxá, foi abordado por uma espectadora do festival que acontece até o próximo domingo, na cidade mineira de Araxá. Na sua emocionante conferência de abertura, transcrita abaixo, Parmeggiani fez um “apelo ao amor” ao falar da sua relação com o Brasil. “Eu conhecia o Brasil pelos estereótipos. Até que, na universidade, eu encontrei um mestre, um libertador, diria. Paulo (Freire) me mostrou que, virando a cabeça para baixo, você pode ver o mundo do outro lado. Efetivamente, o Brasil está do lado oposto do mundo, mas esta é uma questão de perspectiva. Graças a ele, conheci um Brasil diferente, escondido, real”, disse emocionando a plateia que o aplaudiu calorosamente.
Entre 2004 e 2006, Parmeggiani morou no Brasil. “Terminada a faculdade, uma associação italiana que estava realizando um trabalho social na periferia de São Paulo me convidou para vir trabalhar como educador e eu, com a leveza dos sonhadores e a coragem de um coração selvagem, fui”, lembrou o escritor. “Se o italiano é a minha língua materna, o português do Brasil é a minha língua paterna, eu diria. País-pai então, que me ensinou a dizer aquilo que não conseguia dizer porque não tinha palavras, os verbos, o sotaque certo. Tenho vocação de Brasil. Sou café com leite”, disse emocionando a plateia.

Roberto escolheu o tema “amor” porque o festival, que tem curadoria de Afonso Borges, elegeu como tema “O amor, a literatura e as diferenças”. “Essas três palavras, pela minha experiência, são bem ligadas. A escrita é um ato de amor, uma entrega total que chega ao outro através da leitura, outro ato de amor, de confiança que relaciona diferenças, as inclui”, disse Parmeggiani ao PublishNews. O escritor está no Brasil para divulgar o seu livro O mundo de Arturo (Nós). “Esse tema, aliás, tem muito a ver com Arturo. Ele é um menino que tem dificuldade com a leitura, se percebe bem diferente dos outros e pensa que não vale nada. Mas ele não está sozinho, ele tem um tio com o qual passa muito tempo falando de cavaleiros. Nesta relação, através do amor e da confiança do tio, Arturo encontra um caminho para voltar a acreditar nele mesmo e nos seus desejos”, resumiu.
A programação do Fliaraxá terá, além de Parmeggiani, outros 70 escritores, entre os quais se destacam os teólogos Leonardo Boff e Frei Betto, os filósofos Mario Sérgio Cortella, Marcia Tiburi, Clóvis de Barros Filho e Vladimir Safatle, as escritoras infanto-juvenis Thalita Rebouças e Paula Pimenta, os infantis Nelson Cruz, Marilda Castanha e Mary e Eliardo França, os youtubers literários Eduardo Cilton e Taty Ferreira, o músico e ativista social MV Bill, os poetas Zack Magiezi e Sérgio Vaz e os escritores Nelson Motta, Laurentino Gomes, Miriam Leitão, Sérgio Abranches, Sérgio Rodrigues, Eduardo Spohr e Milton Hatoum, autor homenageado desta edição. Além de Parmeggini, os portugueses José Pinho e Tatiana Salem Levy e o norte-americano Willian Gordon são os convidados internacionais.
Íntegra do discurso de abertura do Fliaraxá
Queria expressar meu amor pelo Brasil e queria fazê-lo contando como foi o nosso encontro, a nossa relação, como ele mexeu comigo... e vou fazê-lo utilizando algumas palavras da literatura brasileira. Porque a nossa é uma história de amor e de palavras.
Apelo ao amor
A maior riqueza do homem é a sua incompletude. (Manoel de Barros)
Por isso olhamos o horizonte desejando alcançá-lo e buscamos outras margens para além das quais esperamos encontrar quem somos.
Eu conhecia o Brasil pelos estereótipos.
Os estereótipos que cada país, cada pessoa carrega consigo.
Que o nosso olhar carrega consigo:
Samba, carnaval, mulheres, praias, favelas...
Isso era o Brasil para mim.
Até que na universidade encontrei um mestre, um libertador diria.
Paulo me mostrou que virando a cabeça para baixo, você pode ver o mundo do outro lado.
Efetivamente, o Brasil está do lado oposto do mundo, mas esta é uma questão de perspectiva.
O oposto depende do ponto a partir do qual você quer olhar.
Graças a ele, conheci um Brasil diferente, escondido, real.
Com Paulo Freire, me tornei um intelectual que não tem medo de ser amoroso. Amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade. (Paulo Freire)
Terminada a faculdade uma associação italiana que estava realizando um trabalho social na periferia de SP me convidou para vir trabalhar como educador e eu, com a leveza dos sonhadores e a coragem de um coração selvagem, fui.
Foram dois anos de infinitas relações, de vida, de aprendizagem.
Quando voltei para a Itália levei comigo este imenso pais e um desejo: desaprender para aprender de novo. Raspar as tintas com que me pintaram. Desencaixotar emoções, recuperar sentidos. (Rubem Alves, outro mestre)
Passou o tempo e o Brasil, mais uma vez, teve um papel importante para mim.
Estava no Brasil também quando meu coração se quebrou. Meu irmão morreu, de repente, lá na Itália, e eu estava aqui, sozinho. A dor é sempre experiência solitária. Mas me senti perdido, virei lagrimas e choro. Mais uma vez o país que não me deu à luz, cuidou de mim como uma mãe.
Brasil, um país-mãe que cuidou de muitos seres humanos, a maioria imigrantes procurando oportunidades. Mãe de filhos diferentes, todos filhos igualmente.
E o que é a diversidade em um país que é fundado sobre as diferenças?
A diversidade no Brasil não é uma opção, é um jeito de ser, o único.
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. (Guimarães Rosa)
Mas o maior presente que o Brasil me deu foi o idioma, uma língua nova.
Se o italiano é minha língua materna, o português do Brasil é a minha língua paterna, eu diria.
País-pai então, que me ensinou a dizer aquilo que não conseguia dizer porque não tinhas as palavras, os verbos, o sotaque certo.
Comi e me alimentei de palavras e de sons e experimentei na carne-palavra que só a Antropofagia nos une. E que só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. (Oswald de Andrade)
Lei do amor.
Que nos empurra para o desconhecido que nos dá medo e nos fascina.
O desconhecido, no fundo, é a vocação de quem acredita no outro.
É a minha vocação.
Tenho vocação de Brasil
Sou café com leite
ainda preciso de tempo
ainda preciso de futuro
O futuro, possibilidade para quem ousa, para quem sai do conhecido ao encontro do quem sabe, talvez, pode ser...
E fui, pulei de olhos fechados.
É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. (Clarice Lispector)
Na maior feira do livro infantil do mundo, em Bolonha, cidade na qual nasci e cresci, encontrei um dia o meu futuro.
Na mão, um papel com o texto impresso e na cara o sorriso de quem acredita.
Entre as editoras do mundo inteiro, qual seria aquela que decidiria sentar e ler a minha historia?
Mais uma vez o Brasil, então.
O encontro com uma editora brasileira permitiu que meu desejo se transformasse em realidade: poder ser, enfim, um escritor.
Que sorte, poderia pensar alguém. Deu tudo certo.
Não mesmo... alguma coisa deu errado, aliás os erros foram as chaves que abriram para mim a porta da minha nova vida. Erros, possibilidades a inventar... escolhas, pensamentos e palavras:
Nonada, nonnulla!
Agora a vida é para mim, está se vendo, uma felicidade sem repouso. (Mário de Andrade)
E hoje aqui, novamente no Brasil, convidado neste festival que coloca no centro do nosso destino o amor, as diferenças e a leitura, festejando os meus 40 anos, quero expressar este amor e fazer um apelo.
Por isso me levanto porque o amor merece respeito.
Perante esta palavra tão abusada e tão desrespeitada, me levanto e silencio minha voz por alguns segundos, para poder degustar ainda melhor do sabor que tem uma palavra dita sentindo o peso do seu valor:
Amor
l’amor che move il sole e l’altre stelle (Dante)
E deixo aqui o meu apelo:
Não nos deixe!
Nunca.
Não nos deixe sozinhos
Não desista de nós.
Mesmo quando nos esquecermos de você e, sem amor, justificarmos os nosso piores atos: a rejeição ao outro; a violência exercida sobre os desamparados; a repressão; a exclusão; a guerra; o silêncio cúmplice; a corrupção; o estupro da natureza; a divisão e a guetização pela cor da pele, pela origem, pela orientação sexual, pelas escolhas...
Fica ao nosso lado e lembra-nos algumas palavras:
Amarás o teu próximo como a ti mesmo (Jesus)
Não porque eu, você, nós, merecemos, mas, pelo contrário, porque nesta vida somos todos devedores e que podemos, senão...
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Carlos Drummond de Andrade)