Uma árabe enfurecida no Brasil
PublishNews, Roberta Campassi, 16/11/2011
Joumana Haddad, porta-voz da liberdade feminina, participa de eventos e lança seu novo livro no país

Marquês de Sade não é o autor que alguém em sã consciência recomendaria a uma menina 12 anos. Para Joumana Haddad, contudo, ler Justine quando era tão jovem teve um efeito transformador. A escritora libanesa descobriu a obra clássica de histórias eróticas do escritor e filósofo francês escondida na biblioteca de seu pai, um chefe de família extremamente conservador e ao mesmo tempo leitor voraz, característica que Joumana herdou. Para que ninguém percebesse o que lia, a garota colocava o livro de Sade dentro de um outro maior, bem ameno.

“Lembro de não dormir por algumas noites com as imagens de Justine na cabeça, mas foi uma experiência libertadora”, contou Joumana em passagem por Olinda durante a Feira Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), na segunda-feira, 14. “Os livros foram minha bússola e não é exagerado dizer que salvaram minha vida.” Nascida em Beirute, no seio de uma família e sociedade repressoras, ler, segundo ela, foi a maneira que encontrou para ser livre. Anaïs Nin, Vladimir Nabokov e Victor Hugo também tiveram importância na sua formação.

Décadas mais tarde, Joumana é uma das porta-vozes do mundo árabe contra a subjugação das mulheres, que ela enxerga tanto nos países de sua região natal, de forma mais evidente, quanto no Ocidente, com outros contornos. Além de poeta e tradutora, fluente em várias línguas, ela é editora do jornal An-Nahar e criadora da revista cultural Jasad – que é “especializada nas literaturas, ciências e artes do corpo” e proibida em diversos países árabes. Ela veio ao Brasil para lançar Eu matei Sherazade – confissões de uma árabe enfurecida (144 pp., R$ 29,90), que teve direitos vendidos para 12 países e agora é lançado no país pela Record.

A relação de Joumana com Sherazade sempre foi conflituosa. “Desde que li As mil e uma noites, primeiro a versão censurada, depois a não censurada, tive problemas com ela”, contou Joumana em Olinda. O grande problema é que a protagonista dessa obra canônica passou a história toda negociando com a autoridade – no caso, um homem – para preservar sua vida. “Até hoje as mulheres ‘subornam’ os homens para conseguir algo que já é delas. Por isso eu tive que matar Sherazade simbolicamente.”

Durante a palestra na Fliporto, Joumana leu um trecho de seu livro em português – idioma que ela ainda não fala, mas quer aprender – e foi ovacionada pela plateia, num dos momentos mais emocionantes da festa.

Eu matei Sherazade não foi publicado em outros países do Oriente Médio a não ser no Líbano, e Joumana conta que, mesmo lá, a imprensa o ignorou. As únicas manifestações a respeito da obra ela recebe via twitter ou e-mail. Apesar de o Líbano permitir que as mulheres se vistam como quiserem e tenham algumas liberdades, como sair à noite sozinhas e dirigir, faltam direitos fundamentais. “A lei ainda diz que um marido pode bater na esposa ou que, num divórcio, a mulher perde a guarda das crianças, a não ser que o marido aceite que ela fique com os filhos”, disse.

Joumana também contou que já recebeu ameaças. “Há muitos covardes que tentam impor a vontade deles aos outros”, disse. “Mas eu decidir que nunca me deixaria intimidar.” E é assim, com essa obstinação e fúria, que a autora percorre o mundo levantando a voz a favor dos direitos femininos – uma bandeira que ela considera humanista e não ocidentalizada, como acusam alguns de seus críticos.

A autora estará hoje às 19h no Polo do Pensamento Contemporâneo (Pop), no Rio (Rua Conde Afonso Celso, 103 – Rio de Janeiro/RJ Tel: 21 2286-3299 ), e em São Paulo, no dia 18, para um debate aberto ao público na Casa do Saber, às 19h30, seguido de noite de autógrafos na Livraria da Vila, ambos no mesmo endereço (Rua Doutor. Mário Ferraz, 414 - Jardim Paulistano/SP Tel: 11 3707-8900).

[16/11/2011 01:00:00]