Jeremy Mercer, o queridinho da Tarrafa
PublishNews, Maria Fernanda Rodrigues, 29/09/2010
O canadense era um dos destaques da primeira edição do evento, mas não conseguiu chegar; compensou agora com muita simpatia

Não é exagero dizer que Jeremy Mercer foi a grande figura dessa Tarrafa Literária. Entre a última quarta (22) e o domingo (26), o canadense compensou a bola fora do ano passado, quando descobriu, já no aeroporto, que para embarcar precisava de um visto, e participou com graça de tudo o que pode. Preferiu os debates, mesmo sem entender uma palavra, a uma volta na praia ou a uma tarde de descanso. Jogou futebol pela primeira vez, se divertiu feito uma criança, ganhou uma camisa do Santos com seu nome e descobriu que nasceu para ser lateral-esquerdo.

Fez o passeio de barco oferecido pela Praticagem de Santos, patrocinadora do evento, acompanhou os novos amigos numa saideira de frente para o mar na madrugada fria de Santos e foi ao samba. Conversou com todos os que sorriam para ele. Vestiu gravata quando foi a sua vez de subir ao palco. E quando o seu Um livro por dia – Minha temporada parisiense na Shakespeare and Company se esgotou, distribribuiu recados em pedaços de papel, tirou fotos e lamentou com os que não conseguiram comprar o livro, que está esgotado também na Casa da Palavra, sua editora.

Tanta energia não condiz com a vida que se orgulha de ter. Vive com a mulher, dois filhos, as galinhas Jessica e Debora, quatro gatos e um coelho que muda de nome conforme a filha mais velha, de dois anos, vai aprendendo novos sons e palavras, na casa de uma velha senhora nos arredores de Marselha em troca de pequenos favores como fazer compras ou abrir as janelas pela manhã. “Depois de tirar todas as contas do mês, que sonhos você pode escolher?” Com essa questão, explica um pouco o seu estilo de vida.

Mas depois de três anos morando em Marselha, começa a pensar em outras paragens. Montreal, Buenos Aires, Catar ou alguma cidade brasileira... Ouviu falar de Florianópolis e Curitiba; ontem (28) conheceu o Rio de Janeiro. “Seria interessante morar uns tempos no Catar, trabalhar um pouco para a Al Jazeera, entender aquela cultura”, disse. Entretanto, ficou balançado com o Brasil. “O Brasil é uma explosão na minha cabeça. Percebi que as pessoas têm muita energia e muita coisa está acontecendo no país”. Ele morou em Beijing em 2005, quando também estavam acontecendo muitas coisas, e foi terrível, comentou. “Quero trazer a minha família. Tenho 39 anos e poucas vezes fui tocado assim por um país e por seu povo”.

Ele disse que sempre soube que o Brasil era mais do que futebol, e disse que Rubem Fonseca o ajudou a entender mais sobre o país. Comentou que sempre soube conscientemente que algo estava acontecendo aqui, mas que agora sabia “de coração”. “É clichê dizer isso, mas o Brasil é o país da próxima década, e não digo isso apenas por causa da Copa do Mundo ou das próximas Olimpíadas. Há muitos bons programas sociais e de agricultura acontecendo aqui e seria interessante estudar isso tudo mais de perto. E estou falando 100% sério sobre morar aqui”.

Do Canadá ao chão da Shakeaspeare and Company

Jeremy Mercer era jornalista no Canadá. Cobria a editoria de polícia para o Ottawa Citizen. Tinha um bom salário, era consumista, trabalhava muitas horas por dia, vivia infeliz e estressado e não conseguia sair dessa maré. Foi nessa época que escreveu um livro sobre roubos cometidos por grandes corporações norte-americanas e teve seu apartamento quase invadido. Depois das ameças de morte que recebeu, vendeu tudo e foi passar uns tempos em Paris.

Quando o dinheiro já estava quase acabando e o desânimo pegando, descobriu meio por acaso a lendária Shakespeare and Company, que não é a original, mas é como se fosse. Chovia, ele aceitou o chá oferecido pela atendente e descobriu que a livraria aceitava abrigar os escritores duros com a condição de que lessem um livro ao dia. E ainda davam comida e havia chuveiro. Não foi difícil aceitar. “Como você não tem dinheiro para ir ao cinema, teatro, restaurante, o que faz? Lê! Aquilo foi uma bênção!”

Viveu lá de janeiro a junho de 2000. Antes de se mudar para a França, ele se achava um leitor voraz. Mas foi lá que descobriu, ou pode ler, Paul Auster, Noam Chomsky, Nabokov, Oscar Wilde, Henry Miller, Paul Bowles, Kerouac... As leituras eram orientadas pelo proprietário George Whitman, que insistia em fazê-lo ler alguns livros do auge do comunismo.

O fato de Um livro por dia ser mais de memórias, e não de grandes reportagens como foram os outros, não o deixou longe dos problemas. Há outras obras sobre a Shakespeare and Company, mas são histórias um tanto esquisitas, comentou. Um dos autores acusa o dono da livraria de ser informante da CIA. Outro escreveu sobre passagens mais soturnas e desnecessárias, na opinião de Mercer. Foi por isso, acredita, que George Whitman gostou de seu livro. No entanto, há passagens que a ex-mulher do proprietário preferia não ver no livro, contou.

Em defesa das pequenas

Jeremy Mercer aproveitou para sair em defesa das pequenas livrarias e se lembrou de uma matéria que escreveu para o Guardian destacando as 10 melhores livrarias do mundo. Dessas, quatro já fecharam as portas.

“Você tem que comprar o máximo que puder em uma livraria pequena. Deve apoiar e prestigiar seus eventos culturais, suas leituras. Deve optar por dar de presente uma camiseta comprada em uma livraria”.

Para ele, muitos livreiros estão perdendo a fé, mas as pessoas podem ajudar a fazer o negócio sobreviver. E as livrarias se manterão firmes e fortes se encontrarem um outro caminho além da simples venda de livros. Ter outras coisas para vender, como essas camisetas que ele cita, e cafés são algumas de suas sugestões. Ele é defensor da lei francesa que prevê o desconto máximo de 5% no preço de capa dos livros.

Um pouco antes desta entrevista, quando foi se despedir da plateia, levantou e fez o apelo também ao público: “Compre seus livros na Realejo, tome um café na Realejo, vá aos eventos que ela promove”, referindo-se à livraria santista de José Luiz Tahan, promotor da Tarrafa Literária.

Futuro

A experiência na livraria foi transformadora e o ajudou a redefinir e a reconstruir sua vida. O ambiente, as companhias – de pessoas e livros, a vida sem dinheiro. Tudo foi decisivo para deixar para trás a vida que levava no Canadá. “Na livraria, percebi o quanto eu era ignorante. Eu pensava que sabia tudo”, disse. “Hoje só faço coisas das quais gosto. Escrevo ensaios sobre ciência, religião e outros temas e nunca mais quero trabalhar com deadlines”, diz o escritor que procura viver com o equivalente a US$ 1 mil por mês e que prepara o próximo livro, de não ficção, que vai tratar de fé e figuras religiosas da França. Trabalhar formalmente em um jornal, nunca mais. “Para jornalistas, as pessoas se tornam máquinas. E eu não posso mais fazer isso”.

A cobertura da Tarrafa Literária pelo PublishNews tem o apoio da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

[29/09/2010 00:00:00]